Enfim, texto novo.
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Um verdadeiro fuzuê, coletivo de fuzarca. Helicópteros da polícia e das redes de televisão e rádio sobrevoavam o pequeno sobrado na rua apinhada de gente: curiosos, policiais, jornalistas, urubus e toda sorte de traficantes, ladrões e criminosos variados, estes últimos à paisana. Dentro da casinha e de seus dois andares, o mundo de Gabriel, que muitos chamavam de anjo - outros o alcunharam de capeta.
Gabriel nasceu Frederico, mas virou Gabriel quando começou o roubar coisas maiores e mais valiosas que confeitos de supermercado ou frutas de Dona Iolanda, a dona da quitanda e amiga de infância de Nora, a mãe de Frederico. Gabriel, para ser anjo. Frederico era nome de batismo e virara Fred, Fredinho, Derico, Frê antes de vestir a carapuça de santo: "Para ser ladrão não posso aceitar diminutivos", disse para o pai quando foi preso pela primeira vez, com dezesseis anos, oito meses e vinte e três dias.
De criança, guardava boas memórias. A bicicleta, a bola, os amigos inseperáveis João e Darismar, de ir ao jogos do São Paulo, de caminhar nas pracinhas do bairro, do escorregador, do sorvete de massa que a Tia Gula fazia. Da escola, da professora de ciências, das pernas da professora de ciências, de olhar o vestiário das meninas, de cantar Roberto Carlos, José Augusto, Benito de Paula e "Feelings" do Morris Albert. E muitos lembravam com carinho do rapazola forte, educado, bom de papo, riso fácil, o afeto dos irmãos, companheiro do pai nas rodas de dominó e que carregava as sacolas de feira de Dona Nora. Do catecismo, da devoção ao pai nosso e ao espírito santo. Das amoras e jaboticabas furtadas em jogos infantis do jardim da escola. "Rapaz de bem", concordavam o Padre Valter e o Demerval Oliva, o eterno diretor da escola estadual do bairro.
E Frederico era assim. Mas Gabriel, não. Gabriel era da pá virada. Começou flertando com um chocolate aqui, outro ali, pequenos furtos inconsequentes das gôndolas do mercado chique da avenida. E eram chocolates para dar de presente para Gaia, a filha de Dona Iolanda, tão acostumada a ver o menino sair sem pagar pelas maçãs, cebolas - sim, ele comia cebolas cruas - e outras frutas da quitandinha da família. Mas Gaia era tão linda que o mundo parava para ela voar. Desde o primeiro dia que ele colocou os olhos na menina, uma quarta feira chuvosa, uma carambola.
Depois dos chocolates, flores. O danado passou a furtar - ressaltando sempre que ainda não tinha escopeta ou a "Rita", tão famosas - flores para galantear a pequena, a pequena musa da sua vida. Mas a paixão por Gaia era uma maluqice na vida dele porque ela não queria nada com Frederico. Nadinha de nada. Muito embora, secretamente, ela gostasse de Gabriel. Muito, enlouquecidamente, perdidamente.
Gabriel ganhou o mundo. Não mais por causa de Gaia. Por causa, sim, dos casacos de grife, dos tênis descolados, da TV gigante, do rádio maravilhoso, da lanterna de dois tempos com luzes coloridas que se acendiam pelo calor do tato, dos vinhos frisantes, dos charutos, da casona para a mãe, do carrão para o pai, do papai noel da vila, das férias no Rio, das férias em Buenos Aires, das férias em Miami, das férias em... Gabriel virou o cão, o demônio, o maior ladrão do mundo. Naquele mundo era o Anjo Gabriel e todos esperavam sua benção. Ou seu ódio. Nestes casos era difícil se manter inteiro ou vivo. Gabriel não prestava.
Naquele dia tocou o telefone do Anjo. "Frederico?" "Não conheço ninguém com este nome." "Frederico, fique quieto e me escute. É Dona Iolanda. A menina vai casar e a gente não quer confusão, ok? Pelos bons tempos, por Nora, sua mãe.". Ele enlouqueceu após o telefone desligar. Pegou o revólver, a "Rita" e saiu dizendo para todo mundo que quisesse ouvir, amedontrando os demais, que tinha "algo a resolver". E saiu, apressado, aparentando fúria e desencanto.
E foi assim. Transtornado, entrou na salinha cheia de gente do sobradinho da antiga rua de infância. Era lá que Maria Santa lia cartas e fazia mapas astrais, desde o tempo em que ele andava descalço a caçar ratos pelados. Entrou e foi gritando, numa verdadeira bagunça de mesas viradas, cadeiras jogadas aos cantos: "Saiam todos!!!! Hoje sou eu que tenho que ser atendido!" E disparou para o alto, todos correndo numa algazarra genuína. Alguém chamou a polícia: "Sim. É ele. E está sozinho. E louco."
"Maria Santa, lê esse trem aí e me diz o que devo fazer! Por tudo que é mais sagrado, me diz aí o que devo fazer!!!" A santinha puxou a primeira carta, sem medo: "Frederico, senta e te acalma." A história acabou ali mesmo, como tinha que ser. E Gaia se casou, sem confusão - sem amor, mas sem culpa - dois dias depois do previsto, pois a família resolveu esperar pelas formalidades de estilo.
11. março, 19.