terça-feira, 24 de março de 2009

Dois para lá...

A crise e a música cubana


É difícil imaginar situação mais estranha do que aquela. Escrevia loucamente mais um parágrafo de textos insanos sobre a crise mundial. A cada minuto e a cada segundo queria escrever mais. Queria que alguém soubesse que o que ele acha da crise, o que ele acha desta rotina sufocante dos que buscam o sucesso, da usura, dos bancos, da governabilidade, do caos.


Escrevia com uma compulsão que fazia os botões do teclado do computador pularem de raiva. E diversos impropérios lhe tomaram de assalto e teve ganas de colocar no texto xingamentos a todos aqueles que fizeram do seu sonho mero desencanto. Escrevia com toques rápidos e as letras se misturavam numa algazarra que mais demonstrava o seu estado de ânimo do que as idéias que tinha naquele momento. Não eram idéias, definitivamente. Eram desafogo, descarrego e aflição.


Emputecia-se, e com palavrão definia com exatidão o sentimento atroz que lhe consumia o fígado, com as justificativas fáceis para matar as velhas canções das praças e os antigos quereres de vermelho. E jorravam letras e mais letras que teciam as mais virulentas críticas para a excomunhão de alguns lúcidos. Era uma febre e as palavras saltavam para a tela do computador com uma velocidade de alívio. Transpirava ofegante e sentia uma espécie de entorpecer. Que ninguém fosse ler, mas desopilava tudo. Como um vômito feroz. Como uma vertigem alucinante.


Já não tinha mais certeza de quantas horas passara ali na frente daquele computador, destilando toda aquela toxina que corroia as vísceras.


Respirou, enfim, aliviado, se levantou e foi ao baile dançar com ela. Tocava um bolero, os passos são mais fáceis para os iniciantes.

09.março.

terça-feira, 17 de março de 2009

Sabotagens da Madrugada

A insônia é uma coisa cruel...

E quando martela, martela.

Este texto é culpa dela. Achei ruim, fraco, teimoso. Mas não me livro dele. Martela...



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Amendoim também tem a letra N...


Repita e escreva sessenta vezes que o pé de moleque é feito de amendoim e que amendoim é escrito com eme de maria e não com ene de navio. Repita e escreva sessenta vezes que o pé de moleque é feito de amendoim e que amendoim é escrito com eme de maria e não com ene de navio. Repita, e escreva sessenta vezes, que o pé de moleque é feito de amendoim e que amendoim se escreve com eme de Maria e não com ene, de navio. Repita, e escreva, sessenta vezes, que o pé de moleque é feito de amendoim e que, amendoim, é escrito com a letra ema de Maria e não com a letra ene, de navio.

Tal qual lição de casa e ditado por ter feito coisa feia, ficou lá se martirizando com a idéia infeliz que lhe veio à cabeça. Percebeu que ainda não dominava - apesar dos tantos anos, dos tantos livros, das tantas broncas e dos tantos tantos - a regra da vírgula. A vírgula ainda era tão misteriosa quanto à donzela, tão desconhecida como o oceano profundo e tão distraídos eram seus pensamentos que se confundiu com os pronomes.

E naquela toada horas se passaram. Talvez dia. Com certeza, noite. O caderno todo rabiscado das coisas do amendoim. Sem casca, salgado, torrado. Eram outras coisas que apareciam pela mente fértil, mas cansada. Obsessão. Não conseguia mais sair daquelas linhas e daquela brincadeira com a frase da lousa dita pela professora em alguma janela distante da memória indecifrável. O tempo estava consumido.

Repita e escreva sessenta vezes que o pé do moleque está com amendoim e que amendoim, mesmo com casca, se escreve com a letra M da Maria, que é nome de bolacha, e não com a letra N, de navio. Repetiu e escreveu, bem mais que sessenta vezes.


Ainda assim, depois de tanto esforço inútil, em amendoim, constatou com uma certeza quase mortal: tem N.

09. fevereiro e março.




terça-feira, 3 de março de 2009

Conclusões

Outro dia esta pequena loja de víveres completou um ano...

Espero que venham outros.




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Notas de rodapé



Nunca pensara na vida após a morte. Agora, morria. E teria que pensar vivamente no momento seguinte, no que faria, onde iria, quais palácios visitaria. Nunca pensara porque a morte sempre esteve distante e não exercia fascínio algum. Mas, repentinamente, era a morte. E o depois.


Pensou nas diversas possibilidades que se ofereciam. Nas possibilidades cósmicas, nas possibilidades imateriais. Pensou no ocaso. No fim e nos começos. Sentiu vertigem e foi preciso muito esforço para retomar a linha de pensamento, frágil, que o mantinha vivo. Mas a morte estava anunciada. E seu corpo já não respondia a nada.


Sentiu um gosto acre. E finalmente entendeu tudo. Que deveria ter respondido aos gracejos e aos cantos de amor de Beatriz, naquelas cartas perfumadas com perfume de boneca. Que deveria ter largado o escritório muito tempo antes, antes da gastrite, antes das dores nas costas, antes da crise de abstinência. Entendeu que deveria ter cuidado mais das rosas colombianas que recebia de Clarice. E que o sorvete de tangerina sempre fora o seu preferido. Odiou ter esquecido o protetor solar e se orgulhou de cantarolar a “Internacional” nas noites frias de outro inverno.


Não sentia mais cheiros e enfim percebeu que não restava muita coisa. As lembranças do refogado de tomate e cebola, os cheiros dos vinhos e do cálice de vermute que tanto gostava. O cheiro da manga e do perfume de Gabriela. Fechou os olhos e imaginou se depois da morte ainda poderia sentir cheiros e constatou que esta seria a coisa mais terrível que iria acontecer: Não sentiria mais o cheiro do café.


Fechou os olhos e estava tudo escuro. Últimos suspiros. Pode sentir a areia fina nos pés molhados, o toque de Ana em seu braço e desnudou toda a imagem de Raquel, tudo nela agora lhe era seu. Tudo ficou escuro, mudo e fim. Quis ainda pedir mais uma canção. Não deu.


09. março.