terça-feira, 24 de junho de 2008

Vinte e quatro de junho



“Olha pro céu meu amor...”



Desconhecia outra forma de aproximação. Era só o correio elegante das festas de São João. Uma timidez atroz o acompanhava. Era imensa, tal qual um elefante num jardim. Mas o correio de São João o tornava valente, bonitão, boa praça, cavalheiro, poeta, bom de dança, papo firme. E não era preciso quentão nem vinho quente.


Foi no correio que conheceu Rosa. E com Rosa dançou quadrilha, pegou na mão, beijou bochecha, encontrou lábios, namorou, se deitou, e namorou, fez amor, sacanagem, massagem e tudo então. Mas perdeu Rosa, numa discussão sobre botão e cerzir. E São João também lhe trouxe a doce Margarida, completa, mulher vivida, mais velha e sabida. E com esta paixão aprendeu o que era traição. E este amor durou só dois São João.


Os amores eram assim. Era, na quermesse da matriz, o favorito para o papel do noivo. As cartas do correio elegante eram famosas e ruborizavam as destinatárias e deixavam zangadas as esquecidas. Alguns murmuravam que fizera um pacto com o santo e sentiam inveja daquelas.


Nos papelotes de amor do elegante correio da festa conquistou Maria, Vitória, Laura, Lígia e Libertina, esta última sua maior paixão. Sempre imaginou que Libertina um dia voltaria, com ingressos para Campina Grande, passagem para Caruaru ou só para um chamego no calor da fogueira de uma noite de junho. Mas ela nunca voltou e ele reescrevia as cartas para outra senhorita, senhora, moça ou perdida. Era desse jeito que conhecia o amor.


A fogueira era quente. A festa das boas. A quadrilha animada. As barracas, cheias de prenda. Olhou para os lados, olhou para os cantos e nada das moças de pernas grossas e vestidos vermelhos, as elegantes donas do correio, as carteiras do flerte, as companheiras das palavras de amor. Sentiu desamparo e algum desatino. Perguntou para o padre, para as devotas e para o senhor de terno preto. Quase um desespero, sem respostas e só anedotas.


“Oi... posso lhe falar?”. Era uma das moças de pernas grossas, demorou a lhe reconhecer, sem o usual vestido vermelho. “Hoje não tem correio. Vamos dançar que é noite de São João.”. E sem perceber estava mais alegre que o santo, mais vivo que as labaredas, de cafuné apertado e aliança na mão, cantando: "São João disse que não... isso é lá com Santo Antônio....".

2008. junho.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Eclipses Lunares


Inferno Astral


Sabia perfeitamente quando o humor saía mais cedo, apressado. Reconhecia, logo ao jornal, que ler o horóscopo era o presságio de um dia absolutamente perdido. Este autoconhecimento lhe dava náuseas, não importasse o horário da constatação. E esta constatação era repentina. E certeira. E era o horóscopo.


O daquele dia discorria algo sobre vibrações lunares. No que ele logo desconfiou que fosse chover. E que, evidente, o guarda chuva ficaria no carro. Ou no escritório. Ou pior, em casa. Na mesa de centro. Esperando pelo nada.


Estas certezas absurdas, decorrentes naturais do processo de flagelação do ânimo, se tornavam materiais, não vultos, nem sombras. Eram a grandiosidade da enxaqueca, a moleza da gripe, a ânsia dos males estomacais e os pruridos da pele seca.


Tivera imensa e recorrente vontade de se prostrar na cama a espera do humor. Pelo breve retorno daquele bom estado de espírito. Jurava cancelar a assinatura do jornal, para nunca mais ter com o horóscopo. Formulou a teoria metafísica do caos da alma, em quase segundos, no trajeto rápido entre o chuveiro, a toalha e o quarto de dormir e vestir, que consistia em anotações sumárias e a tese de que um homem de bom humor não recorre ao horóscopo. E as vibrações lunares serviriam apenas para as grávidas e para os cortes de cabelo.


Sentia um frio terrível de bater os dentes. Vestiu o primeiro casaco que descobriu vazado por traças. Não encontrou as meias limpas nem a camiseta branca para colocar por baixo da camisa de trabalho. Os punhos puídos da derradeira camisa azul, a única passada e lavada disponível, lhe tiraram as últimas gotas de estima.


Neste dia desceu as escadas a pé. Para evitar qualquer vizinho, má sorte, fofoca ou bom dia. Rompeu o tendão e caiu estatelado no lixo mal fechado do quinto andar. No jornal amarrotado a página astral: “Não vocifere com o destino.”. Riu. O ridículo trouxe o humor, trotando belo cavalo e trajando armadura. E pelo menos o zelador pode ouvir anedotas...


2008. junho.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Bobinha... mas gosto



Aos doze de junho


Ao me deitar
Queria teu colo
E no teu colo
Deitar.

Ao me levantar
Queria teus afagos
E no teu afago
Levantar.

Ao que me deito e levanto
Querendo teu colo e afagos
E neles
Ficar.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Das cousas que não se mensuram pela distância



Releituras


Olhava fixa e intensamente para a janela. Ouvia os pingos finos da chuva fria encontrarem-se com o vidro. Gostava daquele barulho. Acho, que no fundo da alma, todos gostamos. Não percebera o passar do tempo. Alguns minutos, talvez. Ou hora. No colo, outro bom livro de Machado. Nos pensamentos distantes, nem a chuva nem os olhos de ressaca.



Pensava naqueles dias de outono, das flores vermelhas e do pouco frio, mas o suficiente para a boa coberta, o bom vinho, a boa preguiça e o bom cafuné. Era ela que desfilava pela casa, ainda com as roupas dele, arrumando o jornal, colocando a mesa em ordem e preparando o café, entendendo pouco a pouco que ele gostava mais de café do que de leite, mais de manteiga do que do requeijão, mais água e sal do que bolo de chocolate. E descobria assim sem perguntar, desses jeitos que não invadem, nem perturbam. Era com esses pensamentos que ele se divertia.


Arrumou a coberta e o livro. O frio parecia aumentar, lá fora. Assim como a chuva. Absorto, a encontrou outra vez. A memória naquele mesmo sofá, cabelos soltos, ares de moça, quereres de adolescentes, sabores de fruta e chocolate, perfume de corpos. Estranhou aquela riqueza de texturas, sorriu. Apertou as mãos ao livro. Puxou a coberta, queria mais calor. E com esses pensamentos foi o tempo, anoitecendo tudo: janela, sala, livro, cheiros. Com esses pensamentos todos, experimentou o último gole do copo, o mais longo e saboroso, o malte quase sem o gosto do gelo.


A chuva parara. A luz da lua, viva, intensa, branca, invade a sala. Quase um convite para outra dança, entrelaçar pernas, outros encantos. Um frio que já era calor. Ao toque de um controle remoto, a música continuava. Percebeu, então, que era saudade.


Nem foi preciso olhar para o lado, ela acordara e lhe fazia outro chamego, ainda com as roupas dele, já espalhadas pelo chão.


Junho.08

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Vivendo e aprendendo a jogar...


Outra da série dos times brasileiros e seus torcedores. Eu gosto destes textos. Gosto das releituras. Gosto de escrever tais estórias. Com "e"... E que poderiam ser histórias também...

Publicado originalmente n' Os Bolonistas:

http://osbolonistas.zip.net/arch2007-06-01_2007-06-30.html#2007_06-26_18_18_09-2402205-25


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O Mais Belo dos Botafogos


Bolonistas que queriam ler sobre as outras histórias...



Havia um clima de indisfarçável consternação. Depois de tantos e tantos anos, tantos e tantos jogos, o Botafogo poderia subir para a Série B do Brasileirão. Mas falhou, na reta final. E o pior, falhou na hora que não poderia. O time de João Pessoa amargaria mais um ano de jogos esquecidos.


E o pior é que este fato gerou inusitada e alarmante situação na família Goitacás: Michel não saía mais do quarto, desde o domingo.


Todos conhecem ao menos um Goitacás, lá da Paraíba. Eles são famosos, pois a família se especializou em nomear seus herdeiros com os nomes dos craques da seleção francesa de futebol, muito antes, mas muito antes, do canarinho virar saco de pancada e freguês de carteirinha dos “bleus”. Digo isso, pois todos viram ao menos uma vez nessas matérias de programas de esportes as incríveis façanhas da família Goitacás.


O velho e bom Domenico Salvador Goitacás era jornalista e foi escalado pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro para cobrir o Mundial de 30, no Uruguai. Em feliz dia, Dom Domenico viu, estupefato, a defesa do arqueiro Tephot, da França, numa penalidade cobrada por um atacante chileno. Uma defesa de penalidade em pleno Mundial de Seleções. Algo memorável. E Domenico resolveu que seu primeiro filho se chamaria Thepot Goitacás. E Teté nasceu em 32, sorridente e confiante, ainda no Rio de Janeiro.


De lá para cá várias gerações de Goitacás perfilam os gramados da vida. A família voltou para a Paraíba, ainda nos anos 40. Adotou o Botafogo como time de coração, embora uma ala da família, com nomes de mortais, morasse em Campina Grande e adotasse o Treze. Em 59 nasceu Fontaine Goitacás. Em 61, Kopa. E o Botafogo, o “Belo” da Paraíba foi conquistando títulos e títulos regionais.


O fato é que a campanha do Botafogo fora irrepreensível. Mas no quadrangular final perdeu do Santo André, em pleno Almeidão, e empatou com o Ituano, num inimaginável 4x4, na última rodada. Michel, irmão de Tigana e Rochetau, primo de Amorros, desde o empate se prostrou na cama. Não havia alma que lhe tirasse do quarto. Benzedeira, padre, professor de música e até a dona da quitanda já haviam tentado. Em vão.


Os vizinhos começavam a espalhar boato: “Narcóticos”. Os familiares de Campina Grande, fofoca: “Descobriu que ela o trai.”. Foi aí que o pequeno Zizou, com seus cinco anos incompletos, mandou a certeira: “Paiê... será que se fosse o Treze...”. Michel percebeu o perigo e o ridículo. Abraçou o filho, foi para a praia jogar bola e, por via das dúvidas, comprou mais uma camisa com a estrela vermelha para o menino.



2007.junho, 26.