sábado, 5 de fevereiro de 2011

Onde ele está?




Outra vez a Niara de Oliveira, uma "tuitocamarada", propôs uma "blogagem coletiva".

Da primeira vez a proposta foi escrever algo para a campanha pelo fim da violência contra a mulher, como forma de contribuir na tuitosfera e na blogosfera para as ações do dia 25 de novembro. O resultado foi que esta quitanda aqui pode, ainda que discretamente, contribuir para um processo generoso, solidário e de reflexão, sobre um tema muito importante. Não se muda o mundo só com letras. Mas não se muda o mundo sem elas.


Desta vez a proposta é escrever algo sobre a campanha pela abertura dos arquivos da ditadura militar no Brasil. E este tema me é, particularmente, muito caro. Quando fui gestão no Centro Acadêmico XI de Agosto do Largo São Francisco, na primeira gestão do grupo "Rasgando o Verbo", das cousas que mais me orgulho na vida, em 1994, a ditadura completava 30 anos e nós resolvemos organizar uma semana de debates e intervenções que chamamos de "64 Nunca Mais". Na imprensa da época era comum os "democratas" de plantão dizerem que era importante contar os "dois lados" da história, reconhecendo os "avanços" na economia e etc. Para nós este discurso era uma ofensa. Ainda é. A ditadura e seus mecanismos sórdidos de manutenção já tinham contado sua versão do perigo vermelho e do "ame ou deixe-o". Era fundamental conhecer e dar voz ao outro lado, o lado dos que se opuseram, resistiram e lutaram.

Foi durante aquela semana de debates que conheci Amelinha Telles e Criméia. A Criméia foi entrevistada pela Niara e foi esta entrevista que deu origem a esta blogagem coletiva. A Amelinha, a Criméia, a Janaína, o César, o Ivan Seixas, todos familiares de desaparecidos políticos, me ensinaram que nunca este país vai poder ser soberano, independente, altivo, sem contar para todos a sua história. Sem reconhecer que o que houve no Brasil na ditadura militar não foi uma "guerra". O que ocorreu foi massacre, execução, assassinatos. A tortura é inaceitável. A tortura como método de estado é intolerável. A tortura é execrável, em qualquer situação. Levar alguém aos porões do estado, ao subterrâneo, ao lodo, não é enfrentar o "inimigo". Isto é perversão.

O texto que saiu foi este aqui. Este blogue é um local para crônicas, contos, poemas e algumas outras reflexões. Assim é que resolvi dar minha contribuição. É ficcional, antes que me perguntem quem é Mané. Mané somos todos nós.

Por fim, um grande beijo na Amelinha, na Criméia, no César, na Janaína, na Teresa Lajolo, na Mariluce Moura, na Elisa e na Tessa, no Ivan Seixas e em vários outros e outras camaradas. Foi uma das mais belas lições de vida que eu já tive. Obrigado.

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Onde ele está?



Desde aquela noite, fatídica e maldita noite, trinta de outubro de mil novecentos e setenta e um, vinte e três horas e vinte minutos, não há mais dia, nem tarde, nem dia, nem tarde. E a noite que dura, não tem lua, não tem fim. Levaram o Mané. Arrebentaram a porra da porta, chutaram tudo, derrubaram tudo, bateram em tudo. E levaram Mané.


Não era um carro de polícia. Era uma kombi. Nunca mais pude ver kombis. Nunca mais pude sentir o cheiro de colônia barata daquele filha da puta que esmurrou o João, antes de levarem o Mané. O canalha, o calhorda, o “machão”, desceu a porrada, mas tinha mais uns quatro gorilas com ele. Filha da Puta. E ria, ria nojentamente, escrotamente, despudoradamente. E o jeito que me olhou, o canalha podre...


Levaram o Mané e nunca me disseram para onde. Nunca mais vi Mané. Nunca mais soube dele. Minto, alguns depoimentos diziam que Mané esteve naquele prédio ali na General Osório. E que gritava muito. Mas só. Só este relato e nada mais. Incontáveis audiências, périplos de delegacia em delegacia, quartel em quartel. Audiências na Justiça Militar. Inquéritos, advogados, tapinhas nas costas, “vamos encontrá-lo” e nada. Levaram o Mané. E foi assim.


Mané era, sim, guerrilheiro. Tinha sonhos, defeitos, virtudes, cabelos pretos e olhos castanhos. Não tinha diploma, não tinha mais cédula de identidade válida. Comunista, amigo, solidário e tinha medo de voar. Por isso, ficou. Mas nem isso me deixam saber. Levaram Mané e daquela noite só guardo a tampa do refrigerante de limão que ele bebeu, na última refeição do pão com mortadela barata.


Me diziam, depois que era inevitável concluir que Mané não voltaria mais para mim, nem para lugar algum, que aquilo era uma guerra. Sempre achei que na guerra se trocassem tiros, os corpos eram recolhidos durante uma breve pausa, os corpos sepultados, para depois recomeçarem os tiros e as escaramuças. Sempre soube que em guerras há mortes, feridos e até corpos dilacerados, nunca mais recompostos. Mas de Mané, não sei nada. Até hoje ainda sonho, ele barbado, magro, sujo, mas entrando pela porta de casa. A mesma casa, porque de lá só me mudo quando Mané chegar, ainda que em letras miúdas de um papel amarelado, mofado, com traças.


Depois me diziam que era preciso mudar as coisas. E que mudando “as coisas” eles abririam os arquivos para que as famílias pudessem encontrar ossos, corpos, cinzas ou nada além da data certa, do fato inexorável e do ponto final. Mas as “coisas” mudaram, mudaram de novo e ainda assim aquela maldita noite não acaba, não há lua, nem janela, nem vento, nem nada. Levaram Mané.


Agora me dizem que Mané pode ter denunciado alguém, que torturado, machucado, violentado, pode ter dedurado algum colega. Ou, pior, que o João, que também apanhou naquele e em outros dias, foi quem tinha dado a informação dos paradeiros de Mané nos tempos em que Mané era Duílio. Como se fosse possível torturar outra vez, prolongar o choque, o pau de arara, o arame, as sevícias. Mas eu só quero Mané. Eu só quero acertar os ponteiros do relógio vermelho, ainda pendurado na parede da cozinha, para que meus outubros voltem a ter trinta e um dias... Só....

11. fevereiro, 05.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Desses jogos que não queríamos nunca ter que jogar...

Pensei muito se deveria ou não publicar este texto. É que os demônios da gente ficam zanzando, cutucando, demolindo.

Mas escrever é o único jeito que sei usar para falar de mim. E, as vezes, de me expor. Não gosto das perguntas, não gosto do falar.

Mas tem cousas que se a gente guarda só com a gente, não aguenta.

Enfim....

Obrigado a quem visita.

PS1 (pós postagem) - E um puta obrigado a quem está por aqui, e que tem aguentado os demônios também: Rêre, Du, Pi, Marisa, Dani e os meninos.

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Tá certo. É hora de escrever para exorcizar um pouco os fantasmas, literalmente. Afinal, já é fevereiro. Mas algum lugar da alma parou lá em dezembro, mais especificamente no dia 18 de dezembro.

Era um dia esquisito. Dos mais esquisitos destes anos todos. Minha mãe teve diagnosticado um câncer. E ia operar para extirpar o tumor. “Tudo relativamente simples” diziam os médicos. E, conversando com amigos aqui e ali, vários relatavam episódios similares e boas resoluções. Mas minha mãe estava assustada, com razão. E este assustado nos deixava apreensivos. Ela fez de tudo para que antes da operação lavrássemos uma procuração em nosso nome, para “eventualidade”. Confesso que sempre temo por estes rompantes de organização numa família que sempre foi mais para o macarrão de domingo na hora que der.


Pois bem, a operação se deu. “Tiramos tudo”. Se por um lado o relato do médico nos deixava confiantes, por outro, a perspectiva era de que seriam necessários “radio e quimioterapia”. É sempre um cacete ouvir estas coisas e manter o “otimismo” ou o “tá tudo bem”. Mas dentro do possível, era isso mesmo: O barco que navega.


A mãe teve uma estada no hospital, no pós-operatório, tumultuada. Para os filhos, tão acostumados com a mãe, era estranho vê-la tão frágil. Não que ela não estivesse frágil desde o
AVC do meu pai, em 2006. E ela cuida dele como não cuida dela, preocupada, atenta e, por vezes, monotematicamente. E exatamente por reconhecermos que ela estava cansada, extremamente triste e inconformada com que aconteceu e acontece com o meu pai, estávamos muito preocupados.


O fato é que ela saiu do hospital, a tempo de passar o ano novo conosco. Foi uma festa de Natal das mais tristes no ano que passou. A mãe no hospital e os filhos sem saber muito que fazer... Mas o tal “reveillon” estávamos todos juntos. Mas algo estava errado: Dona Maria Helena sentia dores e um mal estar, cansada e deprê, daquela depressão que nos consome, que nos tira força, o viço, à vontade.


O inevitável, ela voltou ao hospital. Em janeiro, dia 14. Diagnosticaram que era necessário puncionar excessos de líquidos no organismo. E o melhor nesses casos era uma internação na UTI.


Enfim, Maria Helena está lá desde então. Lutando. Talvez pela saúde debilitada, talvez pelo excesso de tristeza, talvez por tudo isso e mais um pouco, o fato é que se conspirou para um agravamento da situação: insuficiência pulmonar, coração sobrecarregado, infecções. E o quadro é grave.


Escrevo estas coisas, sem metáforas tão comuns em outros textos, porque este trem está a me embrutecer e a criar demônios, estes seres inquietos que nos nublam as idéias e as vontades.


Queria que minha mãe soubesse que toda a tristeza acumulada nesses anos todos não nos passou despercebida. E que nossa impotência está exatamente em reconhecer as razões do machucado e não ter idéia de onde começar a tratar. Mas que a Baixinha, a Moleca, a nossa mãe pudesse lutar mais um pouco e ganhar mais um jogo, para que tivéssemos a chance de enfrentar juntos esta tristeza, por mais que esta esteja treinada, preparada e atue no ataque. Nós temos algo, mãe, que a tal tristeza não tem. E, sobretudo temos tua valentia.


Vai lá, Baixinha, ganha essa.


Beijo, te amamos.