segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Consertos em concerto

Alguns textos surgem literalmente do nada...

E depois é difícil se desvencilhar deles.

Vou colocar um deles aqui, para ver se alguém explica.

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Sinuosas reflexões sobre a reforma no prédio


O andaime levava ao nada do andar de cima, em reforma. E como o nada em nada acrescentasse aos riscos do dia a dia resolveu subir. É engraçado como a alma trilha o caminho do nada quando tanta coisa ainda tem que acontecer, mudar, transformar, rever, costurar: Dizer e desdizer. Enfim, andaimes estão por aí para nos levar para algum lugar. A alma reconhece. E sobe.


O nada é sempre aconchegante, no primeiro tato e contato. Como é o nada, de prima o nada muda a nossa ansiedade doentia. O nada aplaca a fúria do inconformismo e sossega os estribilhos de nossos cancioneiros de protesto. E também colabora para amenizar a fadiga, alimentada sempre que a alma sabe que para outro lugar deve ir. Ou agir.


Mas depois o nada cansa. Cansa mais do que a fadiga anterior e, pior, depois do anestésico o nada contagia o cansaço e é impossível não querer dormir. Se jogar na cama e nunca mais acordar antes de saber exatamente o porvir. Ou, pelo menos, qual a nova trilha ou caminho que devemos seguir.


O bom do andaime, neste caso, é que é sempre uma aventura boa. Há uma vertigem que as escadas não dão. E é nesta vertigem que a alma emudece e se pega pensando de fato na vida e nas coisas da alma. A lua então aparece, como que para avisar que no dia seguinte tem sol. Basta abrir a janela. E é bonito perceber que no andar em reforma tem aquela varanda enorme e se não é nada, pode ser uma bela panorâmica. A alma irrequieta começa a desejar que o nada se desfaça entre uma rede e um copo de água.


Enfim resolveu que ia descer do andaime e procurar a porta de saída. Ou a de entrada. Para o novo. Tinha medo de tudo, tremia e tinha sede. Mas descobrira o perigo fatal dos andaimes.

08. novembro.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Conversas de Estio



Roupas, tecidos e estações climáticas



Adoro vestidos. Eles são para mim como o sol. Há nos vestidos algo encantador, algo de sobrenatural. Os longos insinuam tornozelos e há ali um convite desesperado pela panturrilha. Os médios revelam joelhos e é este um fraco de minha alma: Joelhos. Os curtos, os mínimos, deixam as coxas todas à mostra, aquele par de vidas, de calor, de trilhas sinuosas em direção ao mais perfeito dos vales.


Os inteiros podem também revelar os seios. O colo. A parte mais gostosa de uma lida. E imaginar aquele doce caminho que começa por ali e se encerra abaixo do ventre é simplesmente um sonho perfeito. Desses sonhos que nos tiram o sono, nos deixam alegres e nos fazem respirar.


Adoro vestidos, saias, tubinhos. Gosto dos pretos, básicos. Dos coloridos. Dos hippies, dos indianos. Dos frescos e dos de festa. Adoro aquelas penugens que elas tentam disfarçar, mas reveladoras das mais íntimas intenções, ao arrepio. E é inacreditável o quão belo é um por do sol num vestido branco, transparentes vielas ao infinito indeterminável das possibilidades repletas.


Os floridos me deixam animados e o sol brilha intensamente naqueles que tem alça, alcinhas que nos deixam ver os tecidos do sutiã ou as sardas, as pintas, os calores e aquelas gotas de suor indiscretas, típicas de sol quente.


Ela, que sabe de tudo isso, deixa os vestidos para os dias de sol, para tomar um café na padaria, para comer um simples pãozinho francês ou para perambular pelos corredores de minhas fantasias e volúpia. Ou simplesmente para subir escadas, desfilando numa passarela que o meu imaginário sorrateiro tem deleites e texturas.


Escrever este manifesto, esta ode para a mais nobre das vestimentas, a mais tenra das recordações, a mais suculenta das formas, é uma forma de dizer que o verão está chegando. Um alerta. Os armários, estes guardiões imperfeitos e suas donas maravilhosas, estão ansiosos pelos dias mais quentes e para os vestidinhos mais bonitos e escondidos. Os espelhos agradecem. E nós? Nós ficamos aqui a escrever panfletos sobre pernas, joelhos, panturrilhas, pés, coxas, bumbuns, colos, sardas, pintas, suores e canções de amor.


Pode não ser muito, mas é tudo.


2008. novembro, 10.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Armazém

Puxa vida... Sem textos novos.


Mas coloco um velhinho que gosto muito, já publicado nos Bolonistas:

http://osbolonistas.zip.net/arch2008-03-01_2008-03-31.html#2008_03-19_17_50_23-2402205-25

Gosto muito dos sabores e cheiros deste texto. Dá fome.

Espero que gostem.

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Das outras....


Bolonistas em tempos de dérbi...


Sincera e honestamente, nunca tinha reparado naquela pequena loja de secos e molhados que fica na esquina de minha rua. Talvez a pressa do dia a dia. Ou, quem sabe, o fato de normalmente estar de carro. É difícil se andar a pé na cidade grande. Muito difícil. O que é uma pena, concluí.

A loja até que era simpática. Um balcão de madeira bem trabalhado, daqueles antigos. A madeira parecia ser carvalho. Não conheço madeira suficientemente para atestar fé, entretanto. No balcão, uma porção de recipientes de vidro com diversos acepipes de encher a boca d'água: Amendoim, castanha de caju, castanha do Pará, figos secos, azeitonas em conserva, das pretas e das verdes, sardela, pão de lingüiça, maçã desidratada e uma porção de outras coisas visualmente atraentes.

Entrei na loja por acaso, é verdade. Parei só para perguntar se sabiam onde era a Rua tal e qual. Mas o aconchego e o cheiro dos salgados, doces e da madeira me detiveram. E uma enorme bandeira da Ponte Preta ornava o local, atrás do balcão. Inevitável puxar assunto.

O dono do armazém era um senhor de longas suíças, barrigudo e com cara de boa gente. Proseador. Foi logo contando a história do boteco. Abriu uma garrafa de cerveja enquanto preparou uma pequena travessa com as sementes. No tomate seco despejou azeite e me ofereceu guardanapo.

O nome da peça rara era Varela de Vieira. Varela, em homenagem ao carrasco Obdulio, da seleção uruguaia de 50. Nascido no Uruguai, o pai dele era um português que trabalhava no consulado luso em Montevidéu quando o pequeno nasceu. Era a justa homenagem para o povo que o acolhera, me explicou sobre as razões do pai.

E contou que criança foram deslocados para o Consulado em São Paulo. E que o pai ficou viúvo e, desencantado, resolveu largar a carreira diplomática. Acabou em Campinas, dando aulas de direito. Lá conheceu Isadora, e logo vi o retrato da bela mulher, no lado oposto ao da bandeira da Ponte Preta. Isadora era sem dúvida a mulher mais bonita do mundo. A fotografia não deixava dúvidas. O velho retrato destacava um rosto de mulher com aquele sorriso de parar o tempo e os olhos negros de querer a noite. E ela com uma camisa verde, inacreditavelmente verde: Guarani.

Durante anos o velho tentou se aproximar de Isadora, em vão. Ela não notava aquele viúvo, pai do menino Varela. E jurou o bonachão, enquanto descontraidamente abria nova garrafa de cerveja, desta feita de outra marca e mais gelada, que o velho ficou até doente. A outra paixão do velho era o Benfica, me disse. Mas em nome da nova paixão começou a freqüentar os jogos do Guarani, saber a escalação e até vestir a camiseta verde. Pela simples razão da moçoila ser torcedora fanática do Bugre. Vestia o manto nos dias de folga, cantava o hino nas horas vagas e desfilava impropérios nas arquibancadas do Brinco de Ouro da Princesa.

Mas nada. Isadora nunca dera um olhar sequer ao velho pai do Varela. Abriu um sorriso largo, destampou o vidro do alicce, encharcou um naco de pão e sem que eu dissesse nada encheu outro copo para mim: “Até que um dia o meu pai desistiu daquilo tudo sem sentido e começou a andar com a camisa da Ponte Preta, só para demonstrar profunda irritação.”

E um dia de domingo, no tempo em que ir ao estádio era programa de domingo, dia de clássico na cidade, a moça fitou o moço que levava o filho ao Moisés Lucarelli: “Varelinha, que camisa mais feia!!!”. “Vem cá... quem é este senhor, que você nunca me apresentou?”. “Professora, este é meu pai...”. Dois meses depois, casaram.


08.março, 19.