sábado, 13 de dezembro de 2008

Da cidade que virou mundo

Esta é minha mercearia. Na minha quitanda deixo impressões, ficções, ideais e idéias.

Uma das experiências mais legais deste lugar foi a "blogagem" coletiva feita em maio deste ano... http://quodores.blogspot.com/2008/05/coisas-do-brasil-blogagem-coletiva.html

Conheci gente nova e, mais do que em qualquer outro texto, segundo os indicadores pouco confiáveis que disponho, os aviamentos e miudezas deste armarinho foram garimpados, consultados, pesquisados, tocados. E convenhamos, temos nossas pequenas boticas para isso. Para que nossos textos tenham contado com o mundo.

A minha amiga de blogosfera Andréa Motta, dos deliciosos "Leio o mundo assim" e "Conversa de Português", é quem organiza este encontro. Diversos espaços na rede e a idéia é escrever sobre nossas cidades, de nascimento ou adoção. Ler, e reler, os textos produzidos é muito bom. O resultado é diverso e o alimento nutritivo.

Visitem os textos. E aqui está o link para o blog da Andréa: http://leioomundoassim.blogspot.com/

Vale dizer que este texto aqui dialoga com o outro. Pode até ser que o resultado final seja Chover no Molhado. Mas a cidade tem a alcunha de terra da garoa. Talvez a chuva explique...

Bom passeio.

E Andréa... muito obrigado. E ano próximo tens companhia para ver o jogo do Vasco com a Lusa!

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As garoas da cidade e seu guarda chuva


Uma cidade tem esquinas, estatísticas, histórias, amores, desamores, desavenças, descasos, quitutes, trens, saudade e melancolia. Impossível pensar na cidade sem contar os contrastes, os desníveis, os dissabores. Todos os dias em todos os jornais há coisas para contar, sobre o trânsito quilométrico, sobre a tétrica violência na senzala e sobre os casos de bonança da casa grande. Indecifrável aos olhos de muitos que a olham de longe e absurdamente presente na vida de cada um que vive, mora, habita, sobrevive. A capital do progresso. E do regresso. Do retrocesso e da vanguarda. Mas que ainda não sabe para onde ir.


A cidade acorda cedo. Ou dorme tarde. Não há aquele horário da sesta, do descanso, do andar descalço. É sempre sapato. Normalmente apertado. Há cinzas no ar que se respira. Cinzas de tudo, de pó de fábrica ao pó de grafite. Há novelos, mas há desvelo, se soubermos procurar. Tem mais carros que gente. Tem mais gente que precisa de afeto e hospital do que de carro. Tem macarrão para macarronada, para sopa, para yakissoba, para doce, para fazer arte experimental. Tem templo budista e monge que dança ao som dos atabaques, conversando com algum orixá. Tem zabelê, tem besouro, tem barata e tem princesa.


O parque, mas mais asfalto. A fábrica, o desemprego e a oportunidade. A escola, a faculdade, o seminário, poucas bibliotecas e muitas igrejas. Pedreiros, tijolos, argamassa, concreto, andaime, guindaste, tapume. E palafita, barraco, papelão, latão. Tem ar condicionado, carpete, bolsa de valores. Tem calor de mosca, chão de chão e mercado de trocas, escambo. Tem neurocirurgia, átomos, telescópios e microprocessadores. Fila interminável no hospital e não tem curativo. Moderadores de apetite nas mais belas lojas do mundo descolado. Colesterol, derrame, enfarte, enfisema. E esperança, de cura, de sanidade, de saúde.


Uma cidade tem esquinas, estatísticas, histórias, amores, desamores, desavenças, descasos, quitutes, trens, saudade e melancolia. Mas única, brega, apaixonada, enlouquecida, desvairada, careta, conservadora, repleta de gente incógnita e quase bela. A cidade, do jeito dela, quase tudo. Só não digam que é insípida, inodora e sem sabor. Nem a garoa da terra é.


08. dezembro.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Outro verbete

Acho que este é mais um que nasceu nos andaimes...

Sei lá.

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Conjugo, Conjugas, Conjuga...


Resolveu que era tempo de conjugar o verbo saudade. Pegou os velhos livros de gramática e redescobriu as regras mais simples para flexionar tempos verbais. Na primeira pessoa foi possível constatar aromas, sílabas, pequenas caixas de papelão. O sempre difícil pronome tu, com suas regras peculiares, redescoberto entre semblantes, nuca e um bocado de bolo de fubá. E assim foi: pretérito imperfeito e a razão perfeita do verbo.


A lousa verde e o giz branco teciam palavras outras, todas e todas relacionadas ao verbo. Com um avental branco ela declamava poemas ensinando a gramática, a estatística e os substantivos. Tinha a tez arrepiada e a cada novo vocábulo era o verbo, transitivo e direto. Mais que direto.


O verbo saudade não é verbo de cartilha. É mais para cantiga, para saudar, para comer com bolo e uma xícara de café. A fotografia, o verso e o reverso e o barulho incessante da agulha no fim do disco num tremelique da vitrola. Ouviu os pés descalços correndo pela grama molhada e o cheiro de madeira invadiu a sala de aula. Brincou de soldado, derramou tinta no papel e desceu ao rio sem ajuda.


Era mais do que hora do diploma. Do feito. Conjugações outras eram necessárias, desvencilhou-se das lágrimas e correu firme com o olhar a estante. Era mais do que hora doutro verbo. Aprendeu a conjugar o verbo saudade. Mas para respirar era outro. Num suspiro que mais parecia grito, saiu para a rua e dizem que nunca mais voltou.

08. novembro.