quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Confissões Número V



O estranho mundo da dialética


Contradições. Poucas qualidades da vida humana são tão atraentes. O dia começou esquisito. Na verdade, o domingo acabara de forma diferente. Confesso que padeço daquela síndrome do domingo, a síndrome da segunda feira.


Uma sensação que nos toma o estômago, revira e mexe tudo. Sonolento, tenho insônias. Cansado, uma estranha excitação que não nos deixa dormir, que faz ficar assistindo aos piores filmes da sessão de domingo. A segunda feira é sempre pesada, faça chuva, sol ou não faça nada. Óbvio, esta sensação é motivada. Antes, eram as fatídicas aulas. Hoje, as fatídicas reuniões. A sensação deriva de um sentimento contraditório, um misto de inconformismo, pelo fim do final de semana, e de conformismo, pois todos devemos nos entregar ao trabalho.


Estava muxoxo. Depois de um mês de férias e de uma deliciosa licença paternidade deveria voltar ao trabalho na segunda feira. Ele está crescendo rápido. Seu rosto ganha feições a cada novo dia. A cada dia novo ele está mais ativo, mais observador, mais rechonchudo, mais esperto e tantos mais necessários para descrever as mudanças neste primeiro mês de vida. Os momentos mais esperados do dia são todos dele. Uma frase, “Dá um abraço na mãe”, dita sempre quando se inicia o amamentar, e isto ocorre um cem número de vezes durante o dia, me faz sorrir sempre. Um sorriso simples e feliz.


Estava macambúzio. É verdade que fiz reunião de trabalho durante este período de férias. É verdade que respondi a algumas consultas por telefone, fiz algumas tarefas burocráticas. Também é verdade que fui ao escritório na sexta feira, mas passei por lá para um breve alô, para resolver breves pendências e voltei logo para casa. Mas, passar tanto tempo longe, oito, nove, dez horas... Toda vez que fechava os olhos era a imagem dele que eu via, o sorriso fácil dele.


O dia começou difícil. Durante a noite ele acordou e foi impossível dormir depois das 4 e 30 da manhã. Dormitando, eu ouvia o rosnar e o choro. A mãe carregando no colo e tentando fazê-lo dormir mais um pouco. O relógio impiedoso. A primeira segunda feira do resto de nossas vidas, pensei.


Um mês. Um mês inteiro. Quantas fraldas contabilizam um mês? Algo em torno de cento e vinte fraldas? Quantos chumaços de algodão? Zilhares de pacotes, com certeza. Ele dorme em outros colos agora. Este fato também é um indicador de tempo? Ele sorri. Pode até ser espasmo, mas sorri. O sorrir é uma ampulheta?


Estava estranhamente convicto. Uma convicção que me deixou com muito mais vigor que o habitual numa segunda feira. Apesar do sono atribulado, o que normalmente deixaria meu humor imprestável, a segunda feira estava bonita, com sol e calor. Um calor que me corou a face. Meu pai e minha mãe. Dentro de alguns instantes, dentro do carro, teria uma saudade imensa. Mas teria, pela primeira vez na vida, a certeza que as segundas feiras são absolutamente necessárias. Imprescindíveis.


Ele me observa, antes de minha saída de casa. Estava ranzinza.
Provavelmente, a primeira segunda feira da vida dele.


2004.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Rimas Infantes I



Moça Mais Linda


A moça mais linda que vi
Comia um belo abacaxi
Circundada de colibris e bem-te-vis


Moça mais bonita, jamais verei
Se fizer, será quebra de lei
Código Penal, Código Civil infringirei


Ó Bela que me castiga
Doce rima me fascina
De tristezas profundas, mergulho na piscina
Ó Bela que me fustiga

Linda, bonita e bela
Moça adjetivada, distante
Ó lua minguante!
Com seus caprichos... destranque aquela janela

Pantomima de uma moça
Rima rica, rima fácil de palhoça
Verbo com verbo sem graça, parece uma troça

2003.



Clássicos: Zona Leste x Zona Oeste

Festa ou Sábado?


Talvez fosse o único torcedor fanático do Nacional já existente ou nascido. O cara ia assistir o Nacional até no interior do estado, nos finais de semana. Quase morria pelo Nacional. Era paixão desmotivada, como toda paixão sincera.


A história do glorioso azul e branco transmutava-se: heróica, epopéia, homérica.
Lágrimas lhe escorriam a face quando lembrava do título da Copa São Paulo, ou quando do acesso a série A-2. Em compensação soluçava, desabava ao lembrar dos tristes jogos que demoveram-no de subir a série A-1 e pior, rebaixaram o time a uma divisão inferior. Anotava tudo num caderninho amarelado pelo tempo.


Uma vez o time de seu grande coração foi jogar contra a Paraguaçuense, a 400 quilômetros ou mais de distância da capital. Voltou tão abatido que esposa, filhos e parentes ficaram preocupadíssimos. O fato: o carro quebrara no meio da estrada, dormira em motel barato de caminhoneiro. E ele não conseguiu assistir ou saber o resultado do jogo, e já se faziam dois dias!! Dois dias e nada.


O danado ainda por cima tinha um sotaque "paulistanês", aquele inconfundível cheio de erres, “mêus” , bela, Orra e que tais. Seu único pedido para quando do fim da vida: ser cremado junto a uma camisa e uma bandeira do Nacional. E que as cinzas fossem espalhadas pelos gramados do Estado e quiçá do país, para que o Nacional fosse beneficiado por uma ajudinha divina e se tornasse invencível. Batizou o filho de Nicolau, para homenagear o estádio do time. E a filha... É a filha chamou-se Renata pois apesar de fanático, tinha bom senso.


Nicolau, nascido de bem com a vida só podia ser um imenso gozador. Cresceu e com oito aninhos adotou o Juventus para torcer. Dizia ser o grená da camisa. Pelo menos o clube da Moóca costuma freqüentar a primeira divisão com relativa assiduidade.


Acho que vou mandar essa historieta para o Ugo Giorgetti. Quem sabe ele não se entusiasma e faz um filme contando esta. Com o Otávio Augusto e o Abujamra no elenco, com sotaque italianado e camisas azul e branco.


texto publicado nos Os Bolonistas... http://osbolonistas.zip.net/amaral/arch2005-10-01_2005-10-31.html

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Mais uma história

Outra da série de "Outras Histórias" dos Bolonistas...

Originalmente: http://osbolonistas.zip.net/arch2007-03-01_2007-03-31.html#2007_03-19_12_09_29-2402205-25.


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Bolonistas que gostam de finais felizes...



Enquanto alguns perdiam o fiapo de domingo bebericando uns goles de cerveja, uma pizza ou um cinema, ele se entupia de mesa redonda. Era um vício incurável. Terrível até. Perdera amizades, perdera amores. Perdera tempo e dinheiro, discando para manifestar suas opiniões próprias, quase sempre impróprias para os programas de televisão.


Era, desde sempre, um torcedor fanático do Avaí. Mais do que o Guga. Nascera assim, numa quarta feira de um agosto qualquer. Não podia ouvir o nome do Figueirense, tinha colapsos. Uma vez, na escola, desmaiou quando soube que o Joinvile tinha mais torcedores na classe do que o seu Avaí. Sabia tudo e quase tudo sobre o time do coração. Suas conversas prediletas eram sobre o time, a história do time e os craques do time. Chorou rios. E sorriu pouco, mas deliciosamente, nas vezes em que pode.


A rivalidade com o Figueirense era tanta, mas tanta, que não conseguia mais vestir nem preto, nem branco, quando misturados. Ou a roupa era inteira branca e arrancava até a etiqueta preta, ou não tinha jogo. Não tinha como. Muitos não o entendiam. E os que entendiam, ainda ficavam ruborizados quando ele desatava a chorar depois dessas inapeláveis derrotas.


Também pudera. Ninguém poderia ter o nome de Mário Kempes impunemente. Nunca entendera a fixação do pai pelo argentino, mas, enfim, gostava do nome e o futebol foi sempre a coisa mais importante. Na verdade, a segunda coisa. A primeira era o Avaí.


Quando ela o conheceu, soube logo da enfermidade. Desde a escola primária entendia que ele nunca seria dela. Embora os olhos azuis dele quando fitavam os olhos dela sempre faiscavam. Ela o escolhera como paixão, desde a segunda série. Na quinta série, assumiu o amor platônico. Na oitava, indo embora do colégio, admitiu que o perdera para o time azul. Resoluta, adotou o Figueira. E sabia que daquele dia em diante poucas chances teria. Quase impróprias. Impossíveis.


Kempes nunca a entendeu. Gostava dela. Sentia verdadeiros calafrios por ela. E sabia que a vida sem ela perderia a graça. Mas ela nunca dera chance, dera mole, dera pistas. Foi numa tarde de terceira série que percebeu que ela seria o grande amor da sua vida, embora não soubesse deste tipo de amor. E como nas paixões mais arrebatadoras, numa tarde de intervalo num tempo de ginásio, teve ódio: Ela vestia a cinco do Figueira. Logo ela... Por quê? Tentou esquecê-la.


Naquele domingo o Avaí, novamente, reiteradamente, perdia a última chance de classificação para a primeira divisão do campeonato nacional. Aquela tristeza macarrônica o assombrava. Não tinha mais forças. Teria desistido de tudo, se não fosse pela promessa da diretoria em trazer o Jacaré de volta. Desligou a televisão, numa insônia de cataclisma. Resolveu ouvir música... “Ela desatinou...”.


Depois de muito pensar resolveu que deveria viajar. Esquecer um pouco das agruras da segundona, dos gastos com “pay-per-view”. Ir para longe de Santa Catarina. Longe de tudo. E foi. Acordou feliz num quarto de pousada na Serra das Belezas, próxima de Conservatória, num distante Estado do Rio de Janeiro.


Para quem não conhece, Conservatória é famosa pelas serestas. Nas noites de sexta e sábado seresteiros saem pelas duas ruas da cidadela e passeiam a tocar músicas que fazem os cotovelos urrarem. “Quem sou eu... pra ter direitos exclusivos sobre ela...”. “Esses moços, pobres moços, ahhhhh se soubessem o que eu sei...”. Kempes se divertia. Estava leve, embora vestisse o segundo uniforme do Avaí.


O primeiro chamado, não reconheceu. No segundo, pensou ser sonho. No terceiro, era tarde, estava aos lábios dela. “Você por aqui?”. Não deu tempo para resposta. Ela estava de branco e preto. Ele a beijou: “Por onde você andou este tempo inteiro?”.


Não foi fácil explicar aos amigos que ele não sabia que o Tribunal Esportivo mandara refazer a última rodada do campeonato da segunda divisão e que o Avaí jogava na quarta feira, com portões abertos.


2007. março. 19.


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Outras confissões


O poder mágico dos puns


Os primeiros enigmas a serem descobertos por pais e mães são as razões que fazem o choro. O choro é a forma mais antiga e mais eficaz de comunicação entre seres humanos. Entretanto, é indecifrável para os padrões normais da língua culta.



Mas a língua culta não explica tantas coisas e nós sabemos disso. Um exemplo é como traduzir toda a nossa indignação com aquele motorista que fez sinal que ia entrar à esquerda e entra à direita, sem a menor cerimônia. A língua culta é incapaz de expressar o que sentimos. Já imaginou: “Senhor, deixe de peraltices senão transformará seus atos em biltres atitudes que somente um onagro seria capaz!”. O interlocutor, o motorista, não iria entender patavinas e o seu ódio continuaria a azedar o seu sangue.

A primeira demonstração de vida é dada por um sonoro choro, um choro que abre pulmões, que ganha todo o ambiente do parto. Um sinal de vitalidade, esperado e desejado. Com este choro podemos checar se tudo vai bem. E como ia bem... O menino rompeu o silêncio da sala com uma bela nota musical. O impressionante é, ainda no palco inicial, no primeiro tablado, o choro cessar assim que a criança sente o colo quente da mãe e do pai. A linguagem do choro dá seus primeiros sinais e já denota todo o seu poder. E quem tem poder, sabemos os adultos, manda!

Mas o choro é o reclame por comida, por calor, por afeto. É o desintoxicar quando algo incomoda. É o sinônimo da dor. O estranho, o novo e o impreciso. E como a linguagem é indecifrável para os códigos costumeiros, o método para o entendimento é o do experimento. Experiências vão se transformando na chave da nossa vida no puerpério. E os pais, advogados, bancários, economistas, psicólogos, médicos, músicos, todos enfim, se transformam em cientistas da puericultura. A ciência mais inexata de todas.

O que nos faz pensar que ser trocado, deitado, com milhares de mãos passando por cima do corpo, com as pernas esticadas para cima, tracionadas por braços alheios, seja a mais confortável das posições? A cena é digna de um pastelão, se não fosse uma “experimentação” em busca da perfeição: Uma mão passando algodão quente em nossas nádegas, esfregando e puindo. Um estica e puxa daqui, outro ali. Levanta a perninha, abaixa a perninha. Vira de lado, põe a roupa pela cabeça, tira a roupa, põe a fralda e cola a fita adesiva, invariavelmente em nossas pernas. Eu choraria, ou melhor, eu abandonaria a língua culta e entraria no mundo maravilhoso das reações intempestivas!

Na psicologia de boteco temos aquele chavão: para refletirmos e analisarmos determinada situação devemos nos colocar no lugar do outro. Verificando o que o outro sentiria, ponderando se a decisão a ser tomada seria agradável, punitiva, boa, sem efeito ou com virtudes, estaríamos aptos para decidir e compreender as repercussões daquele ato ou fato.

Perfeito, o ato de desembrulhar os pequenos nunca é um ato refletido com a psicologia dos botecos. E dá-lhe choro. Fome?
Os botecos estão sempre certos. Parem e se imaginem estirados em um trocador, com mãos, que são do tamanho de seu tronco, te levantando para “colocar” um macacão. Você teria náuseas, não teria? E o choro é histérico. Mas o que será este choro?

As crianças nascem e são submetidas a este ritual. Não deve ser a sensação mais gostosa do mundo, convenhamos. Chiado, choro, pranto, berro, urro.
No meio da noite ouvimos um grito. Quase que caio da cama. Levanto apressado e escuto, atemorizado, gritos de pavor soluçantes cumulados com grunhidos da alma e um pouco de respiração ofegante. Entro de supetão no quarto, esbaforido, trêmulo. Lá no berço, um rostinho meigo me recebe, olhinhos fechados, bracinhos erguidos e dormindo docemente, o mais pesado dos sonhos. Teria ficado louco? Existiriam bruxas que conspiram contra a paternidade? Um respirar profundo silencia o quarto. Que espanto, o que seria aquele choro? Pesadelo? Terrores noturnos? Lembranças de vozes da barriga da mãe daquele maldito filme que assistimos no cinema? Eu disse que aquele filme era um lixo!

Ou gases? Ouço um “pum” e me tranqüilizo. Outro. E outro. A flatulência é outra linguagem do bebê. Se não flatula, tem dores. Se flatula, comeu bem. Se tiver dores, chora. Se comeu bem, os músculos auxiliares do flatular o fazem chorar, e chora. Se dormir muito, chora. Se não dorme, chora. Se tiver frio, chora. Se tiver calor, chora. Se tiver gente demais na sala, chora. Se chorar muito, engasga, e chora depois. O rosto todo vermelho, uma bola de fogo: é o choro engasgado, pronto para prantear. E aos prantos ficamos, os cientistas, sem saber se algum dia isto vai parar.

Enquanto isso, numa galáxia muito distante, a vida continua. A chuva assola a cidade, inunda. Os povos guerreando e a intolerância golpeando. Os estadunidenses continuam o “americancentrismo”. A política continua esculhambando. A bolsa sobe. Bolsas são roubadas. Ninguém chora muito por isso, o que é uma pena. Há coisas que a língua culta explica, mas o choro ainda é a forma mais distante de comunicação que conhecemos.

Afinal, estamos todos aqui, não estamos?Xi.... esqueci de passar a pomada no bumbum. E pior, esqueci de secar as dobrinhas. Vai dar assadura? Bom, vai dar é choro, na certa.

2004.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

A Velha Cantilena e seu Remédio Milagroso


Estou tão cansado. Meus olhos estão cerrados e é impossível não pensar em não ter mais nada para pensar. Mas tenho que pensar e fazer algo para me tirar desta situação incômoda. O que mais incomoda é saber que há algo a fazer e não poder fazê-lo, por falta de vontade ou por inapetência. Ou cansaço. Simplesmente cansaço. Meus olhos estão cerrados. Cefaléia. Será falta de sono? Estou tão cansado.


O telefone toca. Mais um problema para ser resolvido. Eles poderiam ter características auto-resolutivas, os problemas. Se bem que, muitas vezes, eles se resolvem pelo tempo, pelo cansaço, pela inércia. Era engano o telefone. Engano, ledo engano. Era ele, o problema em pessoa. Não, era engano mesmo, alguém teclou o número errado, procurava outrem. Sufoco. Transpiro. Meus olhos pesam, minha boca seca, meu cérebro continua a martelar.


Quem iria querer me salvar? Só eu mesmo me interesso pelos meus problemas. Que são de todos. Acho que sou louco. Não, sou um psicopata. Que sono. Por que não vou embora para casa se não estou fazendo nada? Por quê? O que mais me incomoda é este incômodo, como se algo perverso fosse acontecer imediatamente após eu me despedir. A perversão é minha. Todos são perversos. Eu sou pervertido. A gota de suor cai pela face.


Vou beber água. Água. Mas será que tenho forças para levantar da cadeira? Por que pergunto tanto se sei as respostas e elas são sempre as mesmas, a martelar, a maltratar?


- Doutor, telefone para o senhor.


Aquelas palavras soavam familiares. Problemas. O problema maior é que o incômodo, incomoda. Provavelmente alguém estaria a me cobrar algo que prometi e não fiz, ou que tenha estabelecido um prazo, e perdi. Ou seria o gerente do banco, esqueci-me de pagar algo. Minha assinatura no cheque não confere. Estou atrasado.


- Sim.


O que mais eu tenho que fazer? Tem aquele cara que me ligou na segunda feira. O que ele quer? A Carolina. Preciso ligar para ela. Minha sede. Água. Quero água. Ela vai querer ir ao cinema hoje. Justo hoje. No sábado não tem aquela maldita prova? Não, sábado não. A Carolina.


Seca. Ela está uma vara comigo. Será que não tem como isso melhorar. Melhorar o quê, se eu mesmo não faço nada? Vou levá-la para jantar. Onde? Cinema? Ela podia me entender só de vez em quando, não podia? E eu me entendo? Lembrei, tenho que escrever para o Luís.


Caro Luís, respondendo ao seu último questionamento, datado de dez de outubro passado, entendo possíveis os encaminhamentos sugeridos. Sugiro, entretanto, que a decisão sobre o que faremos no caso específico suscitado seja debatida na reunião do dia dezesseis. Podemos coletar outras opiniões e dificilmente o setor de Recursos Humanos irá concordar integralmente com a proposta formulada.


Mas será que eu não devia ligar antes para o Luís? Mandar este texto assim, ainda que por e-mail, pode ser que a secretária leia. O RH pode saber desta minha opinião sobre eles e melar tudo. Mas, melar o quê? Eles sempre estão contra, estão atrasados. Atrasado eu também estou. Mas por que cargas d´água o próprio Luís não encaminhou isso? Carolina... tenho que ligar. Sábado. Que dor de estômago. Azia? Só o que me faltava não poder mais beber café!


Recordo que em caso análogo o Departamento de Recursos Humanos recomendou que fossem analisados os riscos de cada hipótese e que fossem refeitas as planilhas, detalhando os apontamentos elencados. Portanto, temos que elencar tais pontos antes de adotarmos uma das alternativas plausíveis. Nossa, será que alguém vai entender isso? Onde eu quero chegar? Sei lá. Sede. Sono. Carolina.


E esse ventilador? Quando, eu me pergunto, quando irão consertar o ar condicionado? Quando? Água. O corredor fica logo ali. Eu mesmo vou pegar a água. Assim, ando um pouco. Estou cansado de ficar sentado. Incômodo. Dor de barriga. Fome. E sede. Não tinha reparado como a Júlia está bonita hoje. Que vestido. Cabia minha mão inteira ali. Levo a aspirina? Esqueci de comprar. Maldito suor, maldito ventilador, maldito calor, maldita a regra que diz que quem está no oitavo andar não pode fumar. Os idiotas vêm fumar aqui. Por isso, por isso não queria vir aqui no bebedouro. É isso.


Isso o quê? Água. Podiam consertar o ar na minha sala. Podiam. Bia. A Beatriz poderia pedir isso. Coitada, já disse ontem. Saco. Mas que sono. Deixa-me abrir o arquivo do Luís. Vou mandar por e-mail, para ele e com cópia para a Beatriz. Ela sabe o que fazer se a chata da secretária ligar. Esta droga de cadeira, porque será que insistem em comprar cadeiras deste tipo. Tenho a reunião. A Júlia está bonita.


- Doutor?
- Beatriz?


Sempre insistem em marcar reuniões. Poderíamos fechar aquilo noutro dia. Aquilo o quê, já que não definiram nada. Pensando bem eles queriam que eu participasse da reunião só para garantir mais um rabo, caso desse tudo errado. Sei lá. Minha cabeça dói. A Beatriz é uma santa. Quando é o aniversário dela? Esse babaca do prefeito... que bela merda esta administração. Que trânsito. Que gosto amargo na boca. Acre. Pensei na palavra acre. Cadê o dicionário? Sede.


Almoço. Não queria almoçar sozinho não. O e-mail do Luís já foi. O Norberto. A Júlia, que horas é a reunião?


- Beatriz, a Júlia.
- Sim.


Onde? Sempre o mesmo lugar. Mas o pão de azeite é bom. As paredes. As mesmas paredes de sempre. Os quadros. O calor, insuportável. Esta minha azia. Este sono. Preciso tomar coragem e trazer um colchão para cá. Quem sabe não faço uma sesta todos os dias. Faz tempo que eu não tiro férias. Tempo demais. Pra quê? A Carolina um dia pede as contas. Será que o Valter ficou irritado com a minha pergunta sobre a Regina? A Laura depois daquele dia nem falou direito comigo. A Regina é uma besta. Acho que vou pedir estrogonofe. Vou levar algo para o Valter. Um vinho. O Norberto disse que sim. Será que ele entendeu o memorando. Suor. Latejando. Aspirina? Onde está? Os valores mudaram. Catzo, que papo é esse de valores? Estou ficando velho. Já sei, vou jantar com a Carolina hoje.


Lembrei! É isso!!! O caso do Doutor Gomes!!!! É lá o precedente! O juiz é o mesmo!


- Beatriz, cancela o almoço com a Júlia. E avisa a Carolina, chegarei tarde.


Acho que encontramos.


2006. 2007. 2008. vários dias, várias revisões.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Futebol de Mesa

Também publicado, originalmente, nos Bolonistas.

Mas não consigo encontrar o "link"...

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Foi um rio que passou em minha vida

“ A bola rola, a emoção toma conta. Vamô lá! Vamô lá, Tricolor!!!. Barcelona 1 x 0 e o Tricolor no ataque. Bola ali pelo meio, Pintado lança em profundidade... Olha lá o Müller pela ponta! Olha lá! Müleeer se manda pela área, Ferrer cai nele. Vai Müller! Ele faz a finta e outra de novo, que lindo! Raí tocou e é goool. Gol do São Paulo!!! Raí, Raí Raí!!! Sempre ele! Empata o tricolor!”

Quase se derrubou a mesinha do bar. Enquanto o radinho no ultimo volume repetia seguidas vezes o lance, pela TV era difícil acompanhar o repeteco. Afinal todo mundo estava de pé. Muitos comemoravam. Os tricolores pulavam e entoavam seus cânticos repletos de Ô, Ô, Ô!! Outros torcedores, outros times, alguns se chatearam, outros indiferentes, poucos felizes.
Noite de sábado. O bar estava lotado. Mesas e cervejas se confundiam. Aquele era o ponto de encontro de muita gente da faculdade. Em ocasiões especiais sempre se podia encontrar algum companheiro da antiga. O pessoal da mesa cinco era fanático por futebol e o programa dominical era ver o jogo na televisão do Heitor, marido da Flávia, bela senhora.
E tinha gente de outros locais, de outras faculdades, de outras turmas. Aqui e alhures se observava gente conversando. Gente torcendo. Gente se revendo.

“- Falta!!! Ô louco, mêuu!!!” O radinho ligado com o som da TV desligado, mania de torcedor. “ - Jogo empatado, tricolor na boa. O lance pode decidir o jogo. Olha lá a cara do Telê!!!” Interessante, os radialistas sempre sinestésicos. “ - Olha o embalo da bola. Prá lá, prá cá. Dá-lhe Tricolor!!! Bola com Raí que vai bater a falta. Zubizarreta, cuidado meu rapaz! Raí vai prá bola, toca. Cafu. Raí de nooovo! Raí pro gooolll!!! Gol! Gol! Gol !!!! Raí vai abraçar o Brasil. Tricolor! Tricolor! Olha o São Paulo! Olha o título! Campeão do Mundo! Raí desempata. O meu coração se deixou levar, está transbordando!!!” Mesas voaram. Garrafas quebraram. Tinha gente chorando.

Que sintaxe. Que alegria. O bar pululava. Quem estivesse por lá passando sentiria um clima de nostalgia da infância, do time, das copas. Quem lá estava esqueceu que era madrugada e se puseram a cantarolar cantigas de guerra, acordar vizinhos e tudo mais.

Querer

Eu quero tudo
E não quero nada
Calo. Mudo.


Irrequieto, fala!
Desconexo, Desconvexo, Dúvida.
Certo, Correto e Reto.
Agudo, Circunspecto, Grave, Obtuso.
Obesidade.


Eu quero tudo
E não quero nada.

Calo, Mudo, Quieto.
Agulha, Adaga.

17/03/96

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O último e o primeiro cálice


Este texto foi escrito pouco depois de uma reunião com cliente, no escritório...



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Durante alguns breves minutos há sempre a impressão que vivemos um sonho, ou um pesadelo. Nas coisas boas, muito boas, tão boas que não podem ser verdades. Nas coisas ruins, tão ruins que não podem ser reais. Mas os breves minutos passam, e não é sonho nem pesadelo. É real e é verdade. Nas coisas boas e nas coisas ruins.

Nesses breves minutos tentamos absorver o fato, analisar, compreender. Ainda não existe o tempo de se deliciar, ou de sofrer. Ainda não há a satisfação, ou a dor. São breves minutos ou instantes e segundos. O tempo ali não passa. Passará rápido na coisa boa. E não passará na coisa ruim.

Um pouco disso já sabemos todos. O resto não. É preciso passar aqueles breves minutos. Descer para o chão e cair e levantar. Na coisa boa e na coisa ruim. O desejo é que fosse sonho ou pesadelo, pois as coisas ficariam eternas, imediatamente guardadas no arquivo das lembranças, memórias. Mas não é assim. E tem o gozo e a lágrima. A coisa boa dificilmente não finda, termina. A ruim, também. Termina, embora não pareça fim.

Não sei se escrevo assim para esquecer. Ou para lembrar. Para saudar ou para anular. Sentir, sentimento. Nesses breves minutos temos que nos preparar para o máximo. De alegria e de tristeza. O máximo pode não vir, mas caso apareça teremos que suportar. Ou enfrentar. Aproveitar.

Não me recordo se eram esses breves minutos. A única coisa que me recordo é do olhar de Catarina. Distante. Não haveria mais noite depois daquele instante. Não haveria mais nada. Nada, o completo nada. A ausência de tudo o que fomos. Acabou. Catarina morreu. Ali olhava para um cadáver. Insepulto. Com ela minhas tristezas mais profundas. Minhas alegrias mais desvairadas.

Nunca foi tão vazio aquele olhar. Vago. Na primeira vez que a vi foi ótimo, delicioso. Ela era a moça mais linda que meus olhos colocaram atenção. O vestido ainda é azul na memória, mas empalideceu o resto. O sorriso, o rosto, o corpo. Só o azul do vestido. Engraçado como a hora da despedida pode ser a mais dolorosa. Ou a mais assombrosa indiferença. Mas do que adianta esta dúvida agora? Aquele olhar e mais nada.

Catarina era a mulher dos sonhos de cada um. Perfeita em corpo, voz e maneiras. Ria, e era alegre. Tinha malícia no olhar, nos traços, no balançar. A voz, rouca. Era porto. Não me recordo mais quando mudou. Qual foi o olhar, a palavra, o dia. Mas há um dia exato? Não me recordo a exatidão dos fatos. Não há lágrimas, porém. Secaram.

Pergunto se é ódio. Um dia talvez. Hoje, diante daquele olhar, era o nada. E mesmo assim tinha a impressão de que era um pesadelo. Que ela me beijaria e sairíamos dali para nossa casa. O normal e o natural seria voltar para casa, ainda que sem olhar, sem falar, sem se tocar. O normal era o nada. E nada mais.

Não ouvi o que ela disse sobre a casa de praia. Assenti com a cabeça. Quantos planos não eram enterrados ali, naquela mesa velha e desgastada de uma dessas salas de tribunais? Pergunto se ainda há amor. Ou pior, se um dia foi. Impossível não pensar que foi posse, e só. Um tinha o outro. Como uma casa de praia. Ela, não sei se me deu um último olhar. Mas se deu não foi ali, naquela audiência. Eu me lembro da última vez que a quis. Era noite, praia. Ela era linda. A melhor coisa que tive.

Naqueles breves minutos será que podemos evitar? Será que existe como fugir ou escapar? Não, não quero difundir os males do destino, da sorte ou do azar. Naqueles breves minutos o fato já aconteceu, não há mais como evitar. Os minutos, só a primeira etapa, o primeiro toque, a estréia. Se tivéssemos como evitar seria antes daqueles minutos. Eu, sinceramente, não sei se meus olhos desviariam daquele vestido azul. Quando percebi estavam lá. Os olhos, o vestido. Os minutos.

Abro a última garrafa daquele vinho. Nosso último contato. Acho que foi ela que comprou, não me lembro. Mas era a nossa safra. O copo. O fim. Acabou. Não era sonho, nem pesadelo. Mas agora eram só lembranças. E mais nada, absolutamente nada.



2006. julho.

De boteco, uma delas

Publicada originalmente nos Bolonistas.

De uma série que gosto de fazer: homenagens aos times e torcedores que rondam por aí.

Esta é a primeira da série, que chamei de "Bolonistas e outras histórias".

Gosto muito desta série de textos...

Xodó.

Espero que gostem.

http://osbolonistas.zip.net/arch2007-03-01_2007-03-31.html#2007_03-15_14_24_15-2402205-25
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Bolonistas que reconhecem uma verdadeira paixão ...


Aquela irritação do domingo, noite. Acrescida de uma legítima dor de estômago, em razão daquelas coisas que só acontecem com o Clube Náutico, o Timbú. Era inacreditável que o alvirrubro tivesse perdido, nos Aflitos, para o Paulista de Jaboatão dos Guararapes. O Paulista já não tinha chance de mais nada. Só de atrapalhar...



Ninguém se chama Euzébio impunemente. Enquanto o estômago revirava, a certeza de que os colegas de trabalho iriam acabar com ele na segunda braba, o telefone: “Oi... tudo bem?” A voz rouca, que ele adorava e fazia o estômago revirar, e muito. “Tudo, e você?”. “Quarta feira estou aí. Vamos nos encontrar?”. Ele quase perde a fala, mas tomou coragem, sabe-se lá de onde, e desferiu: “Jantar aqui em casa. Ok?”. O ar pareceu inexistir durante segundos. “Ok. Beijo. Te encontro na quarta.” A televisão ligada já quase não importunava o ambiente.


As mesas redondas davam grande destaque ao feito do Náutico. Precisando da vitória para se classificar para o quadrangular final, naqueles esdrúxulos regulamentos de campeonato regional, perde. E, mesmo com a melhor campanha nos três turnos, o maior número de vitórias, o melhor saldo, o melhor ataque e o artilheiro do campeonato, o Náutico corria sérios riscos de não se classificar para o quadrangular.


Era difícil aceitar o regulamento. Antes dela, o estômago revirara, a raiva cintilara. O Sport vencera o primeiro turno. O Santa, o segundo. Em ambos os turnos o Náutico ficara em segundo lugar. Naquelas coisas que ninguém explica, o regulamento indicava um terceiro turno: Se Sport ou Santa ganhassem, uma final entre ambos, com vantagem para o ganhador do terceiro turno. Se outro time faturasse o inexplicável turno terceiro, um quadrangular envolvendo os três campeões mais o time com maior número de pontos. Ou seja, um regulamento besta. E o pior, o Náutico já não tinha mais chances de ganhar o terceiro turno e dependeria do simpático Central de Caruaru. Sim, o Central tinha feito um terceiro turno irrepreensível. Mas, precisaria ganhar do Sport, em plena Ilha do Retiro, na quarta feira à noite, para tirar do rubro-negro o título do extraterreno terceiro turno e a vantagem nas finalíssimas.


Euzébio era Euzébio por causa do Euzébio. Isso mesmo. Pai fanático por futebol. Mãe portuguesa. Filho, com nome de craque. Euzébio nasceu Portuguesa, de Santos. Mas se mudou para Recife e adotou o Náutico. E se perdeu. Nos insondáveis caminhos que nos fazem torcedores de um clube de futebol, foi o alvirrubro que colocou arreio. Fanático.


Mas ele tinha aquela paixão de desvario por ela. E de uns tempos para cá ficavam juntos, namoravam um pouco. Uma casquinha ali e outra acolá. Mas ela mudara da Recife para São Paulo. E a paixão ficou assim, suspensa. Era a primeira vez em meses que ela voltaria para a Recife. Em plena quarta feira. Euzébio, quase sem querer: “Ainda bem que o Náutico não tem mais chances... quarta feira desisto do futebol!!!” E sorriu.


Foi mais fácil agüentar o resto do domingo. A segunda feira, foi plácida. Todos admiraram a sobriedade do rapaz. A altivez. Agüentou o sarro de forma sublime, quase inumana. Mas na terça feira avisou o chefe que usaria o banco de horas, que não trabalharia na quarta, na quinta e também na sexta. “Vou espairecer a cabeça.” Mentira. Mas todos acreditaram, era o Náutico.


Fez supermercado. Comprou vinho branco, “chardonay” argentino. Duas garrafas. E ousou, um tinto malbec para depois. Peixe. Iria cozinhar. Legumes frescos, tomates. Deixou a cebola de lado. Uns figos para a sobremesa. Estava deliciado. Só faltava ela chegar naquele “tubinho preto básico” que ele simplesmente considerava a maior demonstração da boa costura mundial. Em casa preparou terreno. Limpou as coisas, deixou propositalmente coisas desarrumadas. Um livro marcado na página predileta displicentemente na mesa de centro. Era o local perfeito. Tirou o pôster do Timbu da sala.


Ousou, ainda mais. Passou à tarde entre a cozinha e o computador. Gravou um “cd” para ocasião. Cuidadoso. Marvin Gaye e a beleza da “What´s going on”. Barry White, umas duas ou três, bem escolhidas e sem exageros. Uma Nina Simone aqui, um John Coocker ali. E uma do Rei, “Outra Vez”. Seu estado de espírito era absurdamente leve e obstinado. Era ela. Finalmente, depois de meses.


Noite chegando. Tudo pronto. O celular avisa que ela está chegando. Alguns amigos desejam boa sorte ao Central de Caruaru, numa evidente provocação gratuita. Ele coloca o aparelho no silencioso. Não quer nada para atrapalhar. Nem o Central. Nem o Náutico. Muito menos o Sport Club do Recife.


A campainha. Ele maravilhado: Era o tubinho preto. Para quem morava na distante São Paulo estava inusualmente morena. Com marcas. Tivera a leve sensação de levitar. A noite prometia tudo. E mais um pouco.


Não vou ficar aqui relatando os detalhes do namoro. Não vou definir o que aconteceu ao som de Barry. O fato é que lá pelas tantas ele foi surpreendido pelo celular, que embora no silencioso, emanava uma luz que indicava a certeza de recados deixados. Ficou curioso. E errou, soberbamente, uma mensagem de texto: “O Central acaba de fazer o quinto gol”. Foi como um soco. Deixou o bichicho mordaz da curiosidade.


Arrumou uma desculpa e foi ao banheiro. Um radinho de pilha. Ligou, sussurros. Era verdade. O Central metera 5x2 no Sport. Era campeão do turno. O Náutico, com melhor campanha, faria o quadrangular. Ouvia-se a entrevista dos jogadores, eufóricos: “Agora é com a gente!”. Saiu do banheiro trajando a camisa do Náutico, uniforme completo. Ela já tinha entendido tudo, desde a escapadela para o banheiro. Tinha ido embora. E deixara um bilhete na mesa: “Em SP, me ligue.” Nunca mais a viu.

2007. março, 15.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Banca de flores

Conversa de Botequim

A cidade é bela quando anoitece. Ao menos o Largo do Arouche. Quando me disseram que ele viria, logo que desconfiei. Afinal de contas ele quase nunca vinha a estas bandas. Seria algum tipo de relacionamento passional ou algo como uma dívida de cartão de crédito? As perguntas pairavam no ar. Cheiro de flores. Arouche, centro de São Paulo.


Não muito longe dali Pedro e Rui estavam no tradicional circuito da Praça da República, hotel Amazonas. Local fértil de histórias. Algumas simples, outras singelas. Amizade, rancor, beleza. Violência, paixão, sexo e complexos. Como será que ele enfrentaria estas realidades? Todos nós éramos moleques descalços, futebol. E agora tudo difere. Fazia algum tempo que eu não conversava com Pedro. Medo? Indignação? Rui, eu sempre falava um oi. Perto dali um café, uma pausa. Jaziam-se amizades.


As flores me entorpeciam. Lúcia. Foi com aquela moça que o clima mudou. Mudou para pior. Sinto um pouco de frio. Ele nunca chegou na hora marcada. Desde a escola era assim. Tal horário e nada. Nada que fizesse esquecer daquela moça linda que nós dois conhecemos, acho que na estação Santa Cruz do metrô, num dia de chuva. Chuva que hoje não viria. Quem sabe ao certo se ele irá aparecer? Sempre atrasado.


Não me restava alguma dúvida. Nem ao menos estas de ocasião, de pensar sem razão nem lugar. Ele não viria. Comprarei umas flores para Lúcia e irei embora. Talvez as entregue para ela, talvez as coloque num recanto da memória, na minha casa. Será que este menino não tem troco para uma nota de cinqüenta? Rosas, muito óbvias. Flores brancas, destas que o perfume passa despercebido. Sobrou algum rancor? Ele certamente não virá.


Chamarei um táxi. A noite. As ruas e o largo. O troco e a chuva fina. Talvez encontre o Pedro ou o Rui no caminho do metrô, creio que falarei dele. Creio que faltará assunto. E da porta do cinema ali adiante, aquele sorriso largo, aquele jeitão de desculpas pelo atraso. Um forte abraço.
“- “Mêuu!! Tava com uma saudade lascada.“ Automático, entrego-lhe as flores.


Se a gente corresse talvez desse tempo de assistir ao jogo, naquele boteco de sempre.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Palavras Cruzadas


A palavra não é o que parece ser
ser parece o que é a não palavra
Ôpa! Tem coisa trocada aí!

A palavra é não o que ser parece
parece ser que não é palavra a
Êta! Agora sim, e daí?
Palavra a é a palavra sim
Sim, a palavra é a palavra
Ufa! Até que sem sentido fica legal.
Não é a palavra,
parece ser.

Confissões da Paternidade III

O Manifesto,
do Banho

O estado gravídico, como as médicas chamam, começa bem antes do moço ou moça propriamente dito. Sim... a primeira lição que os pais tomam em um consultório médico é que a gravidez se inicia exatamente no último dia do período menstrual anterior à fecundação do óvulo. Complexo? Um pouco, mas, se eu entendi direito, o que podemos eventualmente discutir, este fato explica porque contamos a gravidez por semanas e não por meses.

Contar por semanas? Meus caros amigos e amigas, a gravidez se conta por semanas e não por meses. Daí o primeiro mito que desmorona, logo na primeira consulta. Não são nove meses, são quarenta semanas de período gestacional. Nove meses é uma conta de chegada, uma contabilidade popular que ganhou as ruas e as multidões. Quarenta semanas, a ciência indica quarenta semanas. Quarenta, mas pode ser um pouco menos ou pouco mais. E tudo é normal. Normal? Normal para quem?

Bom, com este intróito sobre a gravidez, recordo o quanto de atividades preparatórios envolveram o casal nas quarenta semanas. Literatura especializada e literatura de novela, ultra-som, dicas de todos e de todas sobre como ter, criar e se livrar de filhos, dicas úteis, dicas completamente inúteis. E o curso de gestante...

Foi neste curso que tive o primeiro contato com o banho do bebê. Numa turma repleta de grávidas, com graus complexos e diversos de ansiedade, e grávidos, sempre muito ansiosos, uma enfermeira ensina dicas sobre os instantes decisivos do parto e sobre os primeiros cuidados com o nenê. E há uma aula específica sobre banho.

Na aula do banho pude perceber como tudo parece ser absolutamente impossível. Com o auxílio de uma boneca, a enfermeira vai "ensinando", passo a passo, como dar o esperado banho. " Segurar o bebê pela cabeça? Segurar de forma que as orelhas do pequeno fiquem cobertas pelos seus dedos? E as têmporas, o que faço com as têmporas? Limpar as narinas com cotonetes? Minha nossa, nem as minhas narinas são limpas assim!!! E o cuidado com a limpeza das dobrinhas nos meninos e nas meninas???" . De saída, meninos e meninas já tem diferenças fundamentais... Isto eu já devia saber, não?

Mas a aula prosseguiu, em um ritmo maluco. As perguntas eram as mais diversas: " E se cair água no ouvidinho?". " E se ele cair com o rostinho na água?" " E se..." . A enfermeira, paciente: " Vai dar dor de ouvido. Por isso temos que segurar o bebê pela cabeça, desta forma..." E mostrava a cabeça da boneca na palma da mão, o dedão em uma orelha e o indicador na outra. A boneca, coitada, parecia sufocada. " E o meu filho? E o meu filho? E as têmporas????". Só pensava nas têmporas. Neste pânico interno eu queria chamar a minha mãe, minha avó e queria chorar. Entretanto, pai participativo, não queria transparecer para a minha esposa este pânico e tentava, com esforços que me davam cãibras mentais, parecer seguro e confiante.

Repentinamente, risos nervosos na sala. A cabeça da boneca caiu!!!!!!!! A costura soltou, a cabeça da boneca descolou do corpinho e saiu rolando.... Neste momento quase desmaiei. " E as têmporas?"

Com o fim da aula, confesso, fui buscar reforço. Peguei a literatura especializada e percebi que, com calma, tudo sairia bem. Na literatura de novela constatei que se fulano e beltrano estão inteiros é porquê dificilmente cabeças rolam pelas banheiras. Assisti até um documentário do "Discovery Channel", numa madrugada qualquer. Era esperar para ver.

Maternidade. O dia passa rápido, muito rápido. Mas, como o tema é banho, dá tempo para assistir embasbacado ao primeiro deles. A enfermeira pega o menino, segura pela cabeça e manda ver. Gravei tudo, em caso de emergência. Pai participativo tem que dar banho, sem traumas.

No dia seguinte ao parto, ainda na Maternidade, a mãe e o pai são chamados para, dentro do berçário, acompanhar "o banho do bebê". A mãe deu um show! Apesar do choro esgoelante, colocou o herdeiro na banheira, segurou firme e o resultado final foi bastante positivo. Tenho fotos que confirmam o episódio.
Estávamos preparados para o teste final: O primeiro banho, em casa. Pobres mortais. Nós e ele, claro.

A potência vocal, as pernas agitadas e incontroláveis chutando tudo, o local do banho (um verdadeiro drama)... As têmporas se salvaram, mas eu suava tanto que até uns respingos caíram no menino. Ele chorava copiosamente, mesmo na posição de bruços, indicada para "acalmar". No fim, tudo bem. Passamos no teste. Doce ilusão....

Pais e Mães de todo mundo, uni-vos!

Cada dia é um dia e neste começo de vida todo dia é mesmo um dia diferente. Se no primeiro banho houve comemorações, não se pode, nunca, afirmar com exatidão que os próximos as terão. As têmporas não são, de fato, um grave problema. Mas, e o cocô enquanto carregamos o pequeno, depois do banho tomado e ele todo limpinho e cheiroso, sujando tudo pelo caminho, toda a toalha, o trocador, o chão? Só de lembrar a minha cara de pavor! E desta feita nem a mãe escapou....

Duas semanas e estamos quase lá. Lá, no paraíso dos banhos bem dados. O menino chora, o que é óbvio, mas não é um choro insuportável. Se mexe, mas um mexe e remexe totalmente conciliável com o objetivo final, que é o banho. E mais uma vez, para provar que cada dia é um dia, quando relaxamos um pouco, confiantes nos êxitos dos últimos dias, esqueci de verificar a temperatura da água! Credo em cruz!!! A água pelando e o moço, numa reação naturalmente esperada, urrou. A mãe, pálida, me olha: "O que aconteceu?". Eu, percebendo o meu erro, pois segurava o infante, disse: " A água tá pelando!!!" O olhar da mãe quase me matou. Mas, modéstia a parte, eu retirei o peladinho da sopa em tempo recorde.

2004.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Casa de Fundição

Fundindo os cérebros menos avisados,
ou seriam menos preparados?
O dilema persiste por entre as células dos indivíduos,
que em perplexidade se consomem mutuamente.
O curioso desta controvérsia é a junção de homens e mulheres num único leito,
sem as tradicionais posturas psico-filosóficas.
A agonia e o prazer.
Eis que não iremos cantar o liberalismo como ente vitorioso das lutas ideológicas destes séculos,
a vitória é da imbecilidade vazio antropológica.
E só!
E como quantificar o puritanismo de certas donzelas da sociedade??
Por hora, vejo a extrema necessidade de construirmos uma linha concatenada de pensamento. O simples pensar e escrever dificulta a mensagem escrita.
Mas penso rápido demais e a estrutura seria um entrave ao que quero expressar, de modo que as qualidades do método são razões insuficientes para barrar a continuidade do processo criativo.
As crianças estão indo e vindo e a cola rola solto.
Cola não é apenas uma droga, um subterfúgio da crueldade cotidiana.
É um instrumento de paralisia, incentivado pela grande mão invisível do mercado.
Vamos consumir um pouco de felicidade e abriremos todos uma garrafa de pinga. De alegria consentida.
E como explicar aqueles ataques de preconceito racial e étnico?
O sexo ainda é um divertimento, lazer ou amor ou paixão. Gostoso.
O único perigo é o controle desta atividade,
temos visto que a desinformação nos tem vedado a livre atividade sexual, causando extremo recesso aos amantes, namorados, hetero e homossexuais.
Caixas e caixas de preservativo, urgente.
Orgasmos amplos, gerais e irrestritos.
Assistimos a derrocada de uma civilização.
A lei da selva vigora, vigorosa, entre os homens.
O mais forte e apto sobreviverá, o problema da desigualdade é inquestionável e sem solução. Assim é o mundo porque Deus quer assim.
Que Deus e Diabo se unam, então, numa coalizão de forças para refazer esta coisa.
Sorriam. Os vermes, ao menos, não nos distinguirão
e sofreram a mesma indigestão.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Confissões da Paternidade II

Outra das crônicas sobre a paternidade.
Publicada nos Bolonistas...
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Meu primeiro time de botão


Eu estava todo pirilampo. Meu filhote passou a noite mais tranqüila do mundo, o mais doce dos desejos de mãe e pai frescos. Acordou às quatro da manhã e às oito, sem choramingar, sem resmungar. A mãe trocou a fralda sem um piar. Já o pai, dormiu, pela primeira vez em alguns dias, com relativo sucesso. A mãe também, dormiu e se espantou com o relógio biológico do filho, um britânico.

Quanta coisa eu iria dizer para os avós. Para os amigos pais. Para todos. Que o menino era um dorminhoco e que aqueles pesadelos de noites pessimamente dormidas estavam totalmente afastados. A glória, enfim.

Mas a glória é efêmera e a vaidade é incurável. Peguei o menino no colo e sai a cantarolar pela casa. Ele adora saber das notícias do dia. Então, ato contínuo, o jornal na mesa, passo a ler as manchetes. Uma euforia relâmpago na bolsa, a instabilidade dos mercados, o Oriente Médio. Nada capaz de tirar a concentração e o olhar do herdeiro. Li algo quase que sem pensar e pronto, o semblante mudou, uma cara tensa, retesaram-se os músculos da face e um esboço de choro: São Paulo estréia na Libertadores, no Peru, contra o Alianza, depois de dez anos afastado do torneio.

Devia ter reconhecido meu erro ali naquele momento. Entretanto, a vaidade incurável me levou a fazer umas graças, sacolejando-o e ele voltou a paz. Não conectei a leitura do diário com a alteração de humor pueril. O jornal estirado na mesa e o menino caiu nos braços da mãe. Normal, normalíssimo.
Voltei à sala e ao periódico, ávido por notícias do tricolor mais querido do mundo. Lá do quarto ouvi um choro diferente, a mãe fez uns mimos e tudo bem.

O dia caminhou tranqüilo, é verdade. Só que o menino não dormia. Simplesmente resmungava no colo da mãe, no bebê conforto, no berço, no colo do pai. E, com olhares atentos, parecia querer vingar a noite de belezuras. Banho e nada. Todos sabemos que o ser humano que não faz a sesta fica irritável, esquisito e macambúzio. Os escritórios sabem que no período após o almoço se encontram as maiores incidências de discussões, desempregos repentinos e confusões. E bebê que não dorme, não faz a sesta, se transforma num verdadeiro caos chorão. A vaidade matinal, incurável, levou uma sincera lição.
Eu estava ficando desconfortável com tal situação. “E logo mais, tem jogo do São Paulo”, pensei. E o que faria? Ah.... o meu time é capaz de me trazer lembranças as mais lindas. Quando criança, queria ser Zé Sérgio. E não pude ser, minha habilidade para os esportes sempre foi temível. Os menudos de Cilinho, Careca e o Muller. Quantas recordações. E o Telê? E o Raí? Meu time foi duas vezes campeão do mundo.... Mas, se por um lado o time do coração nos enternece, ultimamente revela um ser mesquinho, doente, irascível, intratável, intolerante. Basta começar a assistir aos jogos pela televisão que me transfiguro, chuto a porta, esperneio e xingo. O rol de palavras chulas é interminável. Lembro de azia, São Paulo perdendo para o Cruzeiro a final da Copa do Brasil. Ânsia, tricolor aumentando a freguesia corintiana nas últimas finais. Raiva, um 7 a 2 da Portuguesa de Desportos....

Cacilda, não poderia ocorrer esta transfiguração no jogo da noite. Imagine o rechonchudo, choroso e manhoso, agüentando meu berreiro, minha inquietação, minha indignação... Minha mulher me matava e a mãe me dava as contas.... Tenso, o que faço?
O jeito era usar o mesmo remédio que venho utilizando há alguns anos. Para aplacar a fúria clubística tenho evitado acompanhar aos jogos, quando posso. Desligo a TV, assisto a MTV. Desligo o rádio e ouço música. Saio para beber um chope. “Hoje, vou assistir Casablanca”, pensei.
Quase me esqueço, com estes devaneios, do choro do menino. Agora um choro frenético. A mãe com uma cara de cansada e eu pensando no São Paulo. Culpa. O colo da avó, toda cuidadosa e ele se esgoelando. A gritaria toma proporções épicas quando sento no sofá e ligo a televisão. Chamo a minha mulher de lado: “Amor, vamos assistir um pouco de TV”. Pronto, o choro ganha um impulso sonoro de amplificador.
Um ato repentino. Me levanto, vou ao quarto e pego o bebê. Aquele rosnar, pois o choro era um rosnar, dá uma sensível diminuída quando inicio um embalar. Aquele rostinho de sorrisos involuntários (involuntários para os cientistas, para os pais é sempre um sorriso) lindo. “Mãe, vou com ele para o quarto, tá bom?” . Minha mulher, linda, solta um sorriso e agradece.
9 horas da noite no relógio. Ao segundo embalo, ritmado com “tapinhas” nas costas e ele dorme. Profundamente.
“ Serginho sozinho... Carlos sai do gol .... Serginho toca e é goooooool do São Paulo... agora não tem mais jeito, Serginho sacramenta o título. São Paulo, campeão paulista de 1981!!!!!” Eu tinha o quê? Nove anos? Eu chorava quando perdia. Chorava, mas não me lembro de ter quebrado nada de sério, um radinho de pilha talvez. Putz... quantos campeonatos eu não inventava no meu Estrelão, para ver o mais querido campeão. Preciso instalar minha mesa de botão.

9 e 35... o relógio. E o jogo. O que custa? Vou assistir, ponho a TV bem baixinho. No menor sinal de que deixaria ele no berço, um rosnar, tímido. Achei melhor levá-lo para a sala. Controle remoto na mão e, decidido, ligo a televisão. Com ele no colo, deitado.

Bola rolando.... E foi tranqüilo. Meia noite. As crianças adoram futebol.
2004, fevereiro, 12.

O metropolitano e a chuva



A felicidade é uma pétala de flor

Era sexta feira. A menina sorri e o imagina todo de branco, a roupa encharcada e a calça completamente suja pela enorme poça. E ele com um inusitado sorriso no rosto.

O dia estava triste. A chuva forte já arrepiara a cidade, o caos era palpável e a Nove de Julho, com seus bem cuidados bueiros e dutos subterrâneos, esburacada. O jeito era pegar o metrô no Anhangabaú, pois parecia impossível chegar à Sé andando nas calçadas lotadas de filas nos pontos de ônibus, repleta de condutores de guarda chuvas sem carteira de habilitação e com o trânsito completamente ensandecido. A Cia. de tráfego desviara o fluxo para impedir o acesso ao buraco na avenida.

A menina então se dirigiu ao Largo São Francisco, e era dia de missa especial e o lugar estava abarrotado de gente. Tropeçando na ladeira ela chegou na estação de metrô, seu passe havia se molhado e a fila, para comprar outro, tenebrosa. E chovia...
A menina se depara com o bilheteiro sem troco e uma senhora resolve lhe pagar a passagem. Finalmente um obrigado na multidão e quando se ouviu o "nem tem por que" muitos se enrubesceram.

O trajeto não era simples, a baldeação na Sé, sempre lotada, era o único caminho. O primeiro trem foi impossível encarar. Todas as sardinhas estariam rindo no conforto de suas latas. O tempo passa e ela finalmente se encorajou e entrou no vagão. Vagão lotado... E tinha estudante estudando, um senhor lendo revista pornô e gente, muita gente. E a estação Santa Cruz estava chegando e o desespero aumentando. A menina quase chora e num instante de intensa coragem empurra uns seis, conseguindo, enfim, sair da lata. E eis que falta energia elétrica e é gritaria e bolsas roubadas e correria. A menina encosta na parede, espera a luz, o pânico se incorporou ao temperamento. Assobia uma música... "Viver e não ter a vergonha se ser feliz". A luz volta e ela desiste de sua apreensão, quase sorri e, tranqüilamente, toma o caminho de casa.

Para ler em voz alta....

Cinemascope

Vinte e quatro quadros por segundo
Vinte e quatro
Vinte e quatro
Vinte e quatro quadros por segundo
Vinte e quatro
Vinte e quatro
Quantos quadros quantos quadros num segundo
Vinte e quatro, vinte e quatro
Quadros por segundo quadros vinte e quatro
Que bitola, que chassi, que remédio
Vinte e quatro vinte e quatro
Quadros por segundo por segundo por segundo
Que medida estabelece
Que parâmetro oferece
Vinte e quatro, vinte e quatro
Ilusão de movimento, tem isso cabimento?

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

De como me tornei tricolor paulista ou Um cara de sorte

Texto publicado originalmente no Bolonistas...

http://osbolonistas.zip.net/amaral/arch2005-11-01_2005-11-30.html

Explica um pouco o começo.

E dá uma vontade enorme de voltar ao Pacaembú, com meu pai e os pequenos.


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Uma Pequena República Não Democrática


Bolonistas da Confraria

Outro dia reli textos do nosso diário. Bom passatempo. Noutro dia, reli as razões do Renato para o Flamengo. Coisa de Andrade, Adílio e Zico. A paixão por um clube é algo que merece dissertações de mestrado. E inesgotáveis debates etílicos.

Nosso Massoneto, ainda noutro dia, aqui neste nosso valhacouto, postou figurinhas do Tricolor de 1978 ou 1979... Toinho, Getúlio, Edu. Sem querer, Massoneto, trata-se de um homem preciso, acertou na mosca. As razões tricolores estavam um pouco naquele esquadrão desajeitado, base do time campeão brasileiro de 77 e vice campeão paulista de 1978. Perdemos para o Santos, do terrível Juari, que adorava marcar goles no Valdir Peres.

Nem me lembro corretamente da seqüência dos fatos, mas já disse noutras vezes que isso pouco importa. Lembro-me do nosso Fiat 147, bege escuro – porque será que não descrevemos as cores com simplicidade, com um simples e explicativo marrom? – e a pergunta: "Pai, pra que time você torce?". Meu pai, um pouco desajeitado, respondeu: "Pro São Paulo". Pronto, sem querer também, sem fanatismos, meu pai acabara de criar no herdeiro outra paixão, esta voraz, entusiasmante, delirante.

Vivíamos uma espécie de ressaca cívica pós jejum. Em 77, 78, todos, absolutamente todos, eram corintianos. Dos colegas de escola, da rua. Da praia. O Timão era a coqueluche. Minha mãe... esta apaixonada pelo meu pai, deve ter dito que era são-paulina. Meu chapa parceiro, meu irmão Edu, nunca, nunquinha, gostou de futebol. Mas, o restante, eram todos adeptos do escrete de Basílio, de Russo e de Aladin. Meus tios, Celso e Sérgio, primeiros parceiros de bola, corintianos. Meus primos e grandes parceiros infantes, o Ivo, o Charles e o Djalma, nas minhas primeiras pelejas de Estrelão e nas primeiras peladas na casa da Vó Tereza, desfilavam sorridentemente o corintianismo. A saudosa casa da Vó ficava na Vila Matilde, Zona Leste da cidadela de São Paulo, o pedaço da paulicéia mais alvinegro de Parque São Jorge. Para os meus olhos, ainda uma cidadela, que começava na Avenida Nove de Julho e acabava na Toco, no Largo da Dona Matilde. Pasmem!

Mas "Seu" Nilton me levou ao estádio pela primeira vez, depois daquele nosso misterioso colóquio no nosso Fiat 147. Diria que foi um pragmático. O torcer do "Seu" Nilton não era, não é, nada fanático. Aqui entre nós, deve ter sido um cadinho doente também nos idos dos anos oitenta, não por causa do tricolor, mas para evitar as reações coléricas deste missivista eletrônico. Deve ter sido no simpático Pacaembu. Sinceramente não me lembro. Acho que nem ele. Mas começo de paixão é esquisita, sempre, e o frio na barriga se dá por razões desconcertantes e, não raro, desconexas.

Com a ajuda do "Google", lembro do esquadrão, disso eu me lembro: Valdir Peres, Getúlio, Bezerra, Estevam (o Estevam Soares, técnico de futebol) e Antenor; Chicão, Theodoro e Dario Pereira (sim, Dom Dario era camisa dez), Edu, Milton (o Milton Cruz, auxiliar técnico do SPFC) e ele, o infernal Zé Sérgio. Deste time, tinha o Serginho, ainda cumprindo suspensão pelo safanão em um bandeirinha. E tinha o Toinho, eterno segundo goleiro de Valdir Peres, mas ídolo dos tricolores. Mas me lembro daquele jogo por causa de Edu, o ponta direita, naquela época tínhamos pontas. Lembro que a torcida apupou o ponta direita, daquela forma ranheta que só as torcidas sabem praticar. E apupos mil. Edu, descobri depois, era um ponta que tinha vindo da Academia. Sei lá se este era o motivo da antipatia, ou se naquele jogo o tal do Edu não jogou nada mesmo. Mas o tricolor venceu. Meu pai deve ter ficado feliz e eu, bom, vocês podem perceber no que se transformou esta história. Obrigado, Luís, pelas lembranças.

Nosso diário, definitivamente, é o informativo e o memorial de uma república. Uma república não democrática, disse o Renato. Eu diria uma pequena confraria republicana de saudosos guris de pés descalços, que a democracia é o que é, e não o que acham que é. Grande abraço.

2005. novembro, 09.

Alguém aí?

Quem sabe o que está acontecendo está mentindo. A mentira aqui é absolutamente eficaz. Ninguém sabe o que está acontecendo. Uma série de acontecimentos que somados não nos dão dimensão nenhuma do que efetivamente ocorre nos dias atuais. Esta imprecisão é oportuna. Tudo é possível, novas conquistas ou novas e profundas derrotas.

Digo isso por estar perplexo. A perplexidade existe em todos os cantos dessas frases perdidas. Assim como perdido estávamos, encontramos nada mais do que milhares de perdidos, de vultos, de corpos se movendo para nenhuma direção aparente. Não reconheci na face de ninguém alguma certeza, alguma ponta de lucidez sobre os fatos que pudesse explicar algo, aqui ou ali.
Este transtorno, entretanto, parece oportuno, já disse. Se ninguém sabe, alguém, sempre existem esses “alguéns”, sabe.

Abro um jornal para tentar compreender alguma coisa e confesso que só me interessei pelo caderno de esporte e por uma ou outra tira de quadrinhos. As notícias padecem de realismo, ou, são muito reais para serem verdadeiras. Ou é mentira. Este caos atemoriza. Algum desavisado pode crer em alguma luz encontrada. Mas há luz a ser encontrada? Ah... nessas indas e vindas eu confesso que nada, absolutamente nada sei. Quem diz que sabe, mente. Se soubesse ficaria quieto.

2006. janeiro.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Confissões da Paternidade I – Meu amigo, José.

Aqui, um texto da série "Confissões da Paternidade". O primeiro deles. Escrito em 2004.

O "Mensalão" ainda não era manchete...

E a tal "coalizão" não existia.

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Confissões da Paternidade I – Meu amigo, José.


Das histórias mais horripilantes que nossa memória poderia lembrar, sobre paternidade fresca, estariam as fraldas. Somos de um tempo, quase todos somos, em que a fralda descartável era ficção científica ou novidade para poucos e abastados. Ou, as fraldas descartáveis viviam um período experimental e todos nós devemos desconfiar do que experimentalismo significaria nesta área tão delicada e barulhenta....

Pois bem, as histórias nos diziam coisas medonhas, como ter que colocar os panos utilizados para refrear o ímpeto dos pequenos, em grandes panelas com água no fogão, para esperar, pacientemente, que a água quente e borbulhante desencralacrasse o cocô impregnado em todas as vísceras daquele tecido. Sem contar as manchas nas roupas, as manchas no tapete, as manchas no berço e o infinito de manchas que nossa imaginação pode conceber.

Hoje em dia, hoje em dia não! A tecnologia “fraldísdica” avançou e com ela fraldas que andam sozinhas, com gel absorvente, formato anatômico e um bebê seguro, sequinho e limpinho. Propaganda de fralda na tevê mostra sempre os pimpolhos dormindo o sono dos anjos e aquele sorrisão na face corada dos jovens pais, seguros e livres do inferno das manchas amareladas pelo resto de suas vidas.

E tem mais! Saindo da maternidade o casal está um pouco intranquilo, com receios e com dúvidas de como administrar o novo integrante familiar. Imagine se, acoplado a estes valores, a insegurança das fraldas...

Ora, isto é impossível, pois a tecnologia atual é movida a poderosos géis absorventes, vindos da NASA.

Entretanto, amigas, amigos.... as fraldas vazam. Elas vazam loucamente e as manchas voltam com força total. A cada mamada, uma troca. De fralda e de roupa. As fraldas vazam o xixi e o cocô. Vazam e é uma beleza. Uma beleza no tapete, no trocador, na roupinha nova do nenê, na roupa velha do papai e na roupa da mamãe, que nunca sabemos se é nova ou velha pela infinidade de peças no guarda roupa.

E deste cenário traço uma interessante parábola com a governabilidade. Sigam o raciocínio: Ganha-se o poder e vamos ter que administrar a governabilidade. Como a roda está pronta, a receita é fácil. Uma composição aqui e outra acolá e pronto. Mas, sempre tem um mas, e nossa coerência ideológica? Aqui entram as fraldas. As fraldas vem em forma de discurso: “Não tem problema, pois a hegemonia do governo é nossa. Os postos chaves estão conosco. A composição é necessária, não se faz um bom omelete sem quebrarmos alguns ovos.” E colocam, ainda, um gel absorvente poderoso: “Vocês não tem confiança no nosso programa?”

Desta cantilena, surge a questão que me paralisou, entre uma troca e outra: E se a fralda vazar?
Nos bebês, sabemos, paciência e recomeço da higiene. Um algodão aqui, outro ali. Depois, troca-se e tudo perfeito. Sabemos, também, que fralda suja e roupa suja espalham o conteúdo. O conteúdo, se não cuidado com esmero, infecciona, dá assadura, pode trazer malefícios aos milhares à saúde infantil. Pergunto: e a governabilidade? Teremos paciência para recomeçar ou nos acostumamos com o conteúdo?

Deixe-me ir... tem um choro vindo pelo corredor.

Coisas de um divagante

Uma brincadeira, também feita há tempos...

O nome da brincadeira: "Subi na escada a beira mar".

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Subi na escada a beira mar
Qual escada, a amarela?

Subi na escada verde a beira mar
De que lugar, qual lugar?

Subi na escada verde a beira mar para ver o paço
Para quê? Por quê? Que fim?

Subi na escada verde a beira mar para ver o paço e achincalhar o prefeito
Com qual direito? O que ele fez?

Subi na escada verde a beira mar para ver o paço e achincalhar o prefeito ladrão
E as provas? E as provas? Calúnia!!! Difamação!!!

Subi na escada verde a beira mar para ver o paço e achincalhar o prefeito ladrão que super faturou a construção da escada amarela
Quem te disse? Mas como? Há provas?

Subi na escada verde para ver o paço e achincalhar o prefeito ladrão que super faturou a construção da escada amarela alimentando as tetas de seu genro da empreiteira
Genro? Genro? Mas é parente?
Esquece, bobo.

Cai da escada verde, quebrei o pé e fui parar no hospital
Genro, mas genro é parente?

Vasculhando o baú...

Uma crônica....

Escrevi isso em algum lugar dos anos 90.

Ainda se entrava nos ônibus em SP pela porta traseira...

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A Doce Vida

Chovia. A aula acabou tarde e ele saíra somente às seis e meia. Detalhe, a matéria, ainda por cima, era ministrada na Cidade Universitária. A fome e o cansaço se somavam à angústia de ter que pegar o ônibus no horário de pico.
O Jaçanã ficava impossível naquela hora, eram todos voltando para casa, de saco cheio e pendurados em algum lugar da porta traseira. O cobrador sempre de mau humor e sem troco. A Teodoro Sampaio tem um trânsito horroroso e com a chuva o cenário era ainda mais desestimulador.
O guarda chuva só existe quando não chove ou para nos molhar as roupas. Janela fechada e tudo embaçado. Ele lembra Fellini e ri.
Calor. O casaco de náilon perdera o sentido. Estava extremamente irritante o contraste entre os casacos e as janelas. Visibilidade zero.
O ônibus seguia firme e nas proximidades da Consolação começa uma correria, uns empurrões, uns palavrões. Era o povo querendo saltar no ponto do Belas Artes. Ele finalmente conseguiu chegar nas proximidades da porta e, literalmente, saltou do ônibus. Aliviado, esquecera da chuva e pisou numa bela poça de água e, diante do inevitável mau humor, arrumou um fundo de inspiração e começou a dançar no toró, e a música do Chico era cenário ideal para o seu sapato branco de residente no Hospital Universitário...
"sambando na lama de sapato branco, glorioso, o grande artista tem que dar o tom."


E nem era sexta-feira.

Enfim, um outro lugar para escrever

A idéia é um lugar para os textos.

Para as coisas. Coisas novas, velhas, coisas.

Vamos ver no que vai dar.