domingo, 25 de maio de 2014

Vai ter copa, mas já não teve.




Minha paixão por copa do mundo data de antes de Raí. Bem antes. Minha primeira memória afetiva de copa é na Vila Matilde, rádio de pilha da cozinha da vó, tios Sergio e Celso e um gol do Dinamite. Hoje sei que o gol foi contra a Áustria e classificou o time de Coutinho na bacia das almas para a segunda fase do torneio argentino. Na época devia entender bulhufas.

Lembro também do povo na casa da vó Teresa torcendo contra a Argentina na final, porque por lá uma tal ditadura comia solta e a Holanda era um time legal. Por mim, não. Gostava do nome "Kempes" e de "Ardiles", que me lembrava ardido. Torci pela Argentina. Soubesse do mundo, talvez não.

Mas o encanto, mesmo, arrebatador, foi em 1982. Na verdade, o mundial da Espanha é o único que existiu. Tudo depois foi mero simulacro, invenção. Valdir, Leandro, Oscar, Luisinho e Junior, Falcão, Sócrates, Cerezo e Zico, Éder e Chulapa. E Paulo Sérgio, Edivaldo, Juninho, Edinho e Pedrinho, Batista, Renato Pé Murcho, Paulo Isidoro, Dirceuzinho, Dinamite. E Carlos, terceiro goleiro. E Telê. E Careca cortado, machucado. Daquela copa guardo memórias infindas, cheiros, gostos, choro. Muito choro. Zoff até hoje é carrasco. Aquela bola do Oscar tinha que entrar, tinha, tinha... Paolo Rossi... nem me fale.

Mas é a copa do goleiro Arzur de Honduras. Do jogo do Kuwait que o sheique tirou o time de campo. Da partida que nunc acabou, França e Alemanha. De Tresor. Dos Camarões de Roger Milla e Nkono. De Dasaev. Enfim, tudo como se fosse ontem mesmo. Até aquele maldito apito final no Sarriá.

Gosto de Copa. Mais, muito mais, do que gosto dos times do Brasil. Destes, confesso, meu último foi o de 90. E em 2002 tive alguma simpatia. E em 2006 um único flash, quando Rogério foi para o gol no jogo contra o Japão. Mas de copa... ah... de copa eu gosto. Gosto de pensar os jogos, de narrá-los antes e depois. De fazer jornadas esportivas em rádios imaginários onde eu sou comentarista e narrador. Gosto do riscado todo. De saber dos times, dos países, dos craques. Das torcidas, roupas, coloridos, holandesas, suecas, dinamarquesas, camaronesas.

E por isso vivo contradições com a copa aqui no Brasil. Desde o começo achei que esse lamentável gesto político do governo Lula, de se atracar na alcova dos negócios com a cartolagem de Teixeira e Nuzman, e todo o couvert que vinha junto, um enorme, retumbante, estrondoso equívoco. E mais: um gesto abjeto para agradar financiadores de campanha e gente que suga o mundo. Porque aquele sonho de moleque, a copa aqui no quintal, foi transformado numa imensa festa de gosto duvidoso, de gente de smoking e summer, caras fétidas e cifras astronômicas. No fundo, bem no fundo, o lulismo foi isso: um triturador de sonhos e de boas ideias em nome das conciliações "do possível". Para continuar a festa do andar de cima, um pacto de classes onde pé e bunda permaneçam no mesmo local de sempre.

A organização da copa foi um triste espetáculo de farras e orgias com grana e miserê. Em nome da tal copa gente foi removida, obras de arte foram erguidas, orçamentos se multiplicaram. Na ambição inicial era a Copa o momento de afirmação dos anos dourados do Brasil de Lula, a confirmação do brasileiros que não desistem nunca, a glória da nação forjada a conquistar seu lugar no panteão do G8, G9, G10. Mas para tanto era necessário, imprescindível até, que se enfrentasse determinadas questões chave de nosso desenho social. As empreiteiras teriam que seguir um cronograma rígido, para que obras e estádios fossem entregues em bom tempo e bom estado. Para isso era imperioso exercer o poder de fiscalização e de gestão, penalizando empresas, cobrando projetos, exigindo compromissos. E aí a singela esperança de que isso ocorreria independentemente de confronto gerou este estado catatônico, que mescla atrasos, incompreensões, dados fora de foco e da realidade do país. Gente removida por nada, por obras que nem prontas estarão. Erros de planejamento. Benesses para os de sempre e, pior, sem nenhuma exigência. As empreiteiras sorriem. Mas os empresários, patrocinadores, a tal da FIFA sorriem bonito, fartos, comendo com opulência pratos de caviar e fígado - de ganso e os nossos.

Era a hora de ter exigido que a seleção brasileira jogasse aqui. O futebol define o país, é um dos elementos mais bonitos que forjam nosso país. A identificação com a seleção seria vital para que este processo de construção de estima, de elevá-la, fosse concretizado. Não é errado dizer que aqui, um país novo, com uma história oficial que infelizmente ignora o período anterior à dominação e exploração colonial, o futebol é um elemento chave da cultura. Nossos heróis são Leônidas, Mané, Didi. Mas para essa gente que pensa em cifras e babados isso pouco importa. E lá vai a "canarinho" jogar no "Emirates Stadium", nos Estados Unidos, na Suécia, na sei lá onde, um circo exaltação para gringo ver. Aqui, só pela televisão. E ainda por cima só numa televisão, porque não se pensou, ao menos durante a organização do mundial, nos jogos e amistosos do Brasil serem transmitidos por emissoras públicas, sem monopólios. Afinal, para quê comprar essa briga?

A copa foi um erro miserável. Um golpe de punhal nas costas. Uma traição. O mal estar que a copa vai causar, e já causou, destroça esperanças e expectativas daquele Brasil que o lulismo fazia crer ter chegado a hora. Não sei se os slogans de "não vai ter copa" estão errados ou certos, porque não dialogam com a alternativas outras que não o da não realização, mas sei que o mal estar, o incômodo, o gosto acre, estão aí. Nem bolões, nem decorações bonitas e coloridas, nem pagodes estamos a fazer com entusiasmo. É tudo um borocoxô de banzo, saudade de algo que não tivemos.

Vai ter copa, sim. E provavelmente vai ser legal. Não pelo Brasil seleção nem pela organização. Mas porque os jogos de copa são assim, pequenas histórias, epopeias, jornadas. Quem viu Uruguai e Gana na última copa sabe disso, com aquelas belezas que emocionam. E nunca, nunquinha, a questão central é torcer ou não pelo time Brasil ou da CBF. Isso é bobagem. A seleção emociona a quem quiser se emocionar. Se jogar bem, então, onde bem e bonito são sinônimos, aumentam as chances de adesão.

A questão, infelizmente, é outra. E me parece que Ronaldo, o fenômeno, dá todas as cartas e pistas. Numa daquelas demonstrações colossais de maucaratismo com oportunismo, ele, organizador da copa no país, sai a atirar no governo federal pelos erros e atrasos em obras, olhando com tesão para um dos candidatos da oposição. O governo federal que escolheu Ronaldo como interlocutor do governo na organização da copa fica a se defender, torcendo para que o lance do craque não dê carta na manga alheia. E a empreiteira, feliz, sorri, na transmissão exclusiva da rede de televisão da novela das oito - que passa a dez da noite... - com a cerveja multinacionalesca paga no cartão de crédito do bancão que mais cresceu no mundo. A FIFA divulga balanço: nunca dantes na história das copas faturou tanto.

Vai ter copa. Mas já não teve.... não teve.