segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Um quodore a mais


Depois de preparar uns quitutes, resolvi compartilhar a festa. Saiu este trem aí: Simples, mas com tempero....


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A geladeira estava ali, no lugar de sempre. O chamava pelo nome, com a intimidade de amigos que moram juntos, sem o desgaste das contas para pagar ou do casamento. Sim, o refrigerador era a companhia ideal para o homem solteiro, depois dos trinta e do primeiro casamento. Era lá que geladas ficavam as cervejas, aquelas companhias de noite de futebol ou dos dias estupidamente quentes. Lá também era o palco para as pizzas que sobravam, os pães, o queijo, o presunto e outros parceiros de bilhar.

Depois de muitas conversas, idas e vindas, era o eletroméstico branco da cozinha o retrato da casa e do dono. Se as crianças passavam por lá, uma festa. Iogurtes, queijos especiais, tomates frescos, carne, filé de peixe, alguma verdura, uvas, maçãs, pêras e até o melão. Se tinha visita alegre, frios, condimentos, alguma carne ou passatempo para bebes e conversas. E quando tinha vinho branco, a geladeira sabia que a noite ia ser boa, quiça barulhenta, daqueles barulhos bons de se ouvir.

Mas naqueles dias de singela decepção com o trabalho, nos dias de fastio, nos dias de luto, nem um mísero copo de requeijão era encontrado com facilidade. A geladeira parecia deserta, tal qual coração em desencanto. A geladeira poderia, muito bem, substituir o dono na ida à terapia, ao trabalho, ao médico. A amiga sabia de tudo. E era discreta.

Enfim, naquele lugar de sempre, ela o chamou, de soslaio, e disse, naquele tom ao pé do ouvido, misto de carinho e repreensão: "Rapaz, você precisa se divertir mais quando está em casa. Veja, aqui dentro tem esta copa que vai estragar se ficar mais uns dias aí.". O rapaz olhou para o aparelho com certa desconfiança, afinal quem era ela para recomendar diversão? "E olha, meu caro, tem aquelas pêras ali. Vai esperar elas ficarem pretas?". Definitivamente a dita tirara o dia, ou a noite, para azucrinar, pensou.

Quando percebeu, estava posta a mesa sorridente, pedaços de pêra envoltos com copa numa mistureba digna de cozinha contemporânea, um suco de maçã com limão batido no liquidificador com gelo, um pão com tomate, queijo branco e orégano, acabado de sair do forno, com azeite, óbvio. O refrigerador, feliz da vida, fazia uma listinha de compras, incluindo abacaxi, sorvete de creme e carne moída, enquanto colocava um "ok" defronte à palavra "estoque". O radinho de pilha encontrou uma estação qualquer que tocava música boa e a lata de atum respirou aliviada: Não ia ser desperdiçada antes do vencimento, virara patê. O pão velho virou torrada. E a noite seguiu, todos cantando "Fly me to the mooooonnnnn".

A cerveja foi colocada no congelador, para um grand finale. Sorvida, antes do batuque na escova de dentes. E a dona geladeira dormiu agarradinha com o armário, a noite todinha. Foi feliz.

10. fevereiro, 21.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A singeleza do voto

Um texto de 2010. Saindo do forno, com cheirinho de pão.


E já contaminado pelo clima eleitoral...



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Ela adorava aquela bunda. Sim, era algo para além do ortodoxo, muito além da simples admiração da beleza. Ele era o dono da bunda e isto costumava deixá-la plenamente satisfeita. De olhar, tocar, namorar. Enfim, era a bunda. E ele nem suspeitava disso. Gostava dela, mas daquele jeito “amiga para as horas difíceis”. Era carinhosa, tarada, falava pouco. Mas, cá entre nós, não tinham muito em comum.


Para ela aquilo era um exercício de fetiche. Não, não era uma sodomita ou cousa do gênero. Mas apreciar o corpo dele lhe agradava muito. E o espelho do teto, nunca o levara para a sua própria casa, era um parceiro silencioso e quente. Sempre tivera suas preferências por homens assim ou assado, mas com ele era absolutamente diferente. Ele não era agradável, necessariamente. Falava muito, para o gosto dela. Era apressado e dormia fácil. Mas ela aprendeu o jeito certo e com ele era feliz. Daquela felicidade efêmera, mas essencial.


O homem da bunda, vamos chamá-lo assim, gostava da companhia dela, mais até do que o hábito lhe recomendava. Era boa companhia para boteco, era ótima ao escolher bons restaurantes e vinhos. Não era pegajosa, escolhia motéis, não queria dormir de “conchinha”. E na cama era um desbunde: Pedia e falava coisas indizíveis noutras ocasiões. Reparou, numa tarde de futebol, que queria a companhia dela mais do que assistir ao restante do jogo monótono da televisão. Questionou, naquelas dúvidas de revista de relacionamento, se deveria ligar num dia como aquele, numa hora como aquela, numa tarde de futebol. “Dane-se”. E ligou.


“Hoje? Não é dia de futebol?”. Pensou, mas não disse. Ela estava no cinema com um amigo. Não ia rolar nada depois, o amigo não gostava daquilo. “Oi... tudo bem?”. “Sim, podemos”. “Mas estou no cinema. Vamos depois naquele boteco ali na Vila”. “O que? Na sua casa?”. Foi um choque. Ela nunca tinha tido a mínima curiosidade em conhecer a casa dele. Pensou no espelho no teto. “Pode ser. Mas mais tarde, estou querendo tomar um chope antes.”. Riu da própria sabedoria. “Ok.”.


Tarde da noite, depois do bar, naquele motel com piscina, sauna e todos esses artefatos de praxe, ele perguntou: “Porque você não quis ir para minha casa?”. Silêncio. A música no quarto era um Caetano, dizendo que ela era linda.


Ela sabia que aquela pergunta era o ponto final, o derradeiro, a saideira, o fim de tudo. Aprumou o rapaz para a última visão no espelho, o da parede, e sem piedade mandou: “Você vota no FHC.”.

10. fevereiro, 02.