Minha
paixão por copa do mundo data de antes de Raí. Bem antes. Minha
primeira memória afetiva de copa é na Vila Matilde, rádio de pilha
da cozinha da vó, tios Sergio e Celso e
um gol do Dinamite. Hoje sei que o gol foi contra a Áustria e
classificou o time de Coutinho na bacia das almas para a segunda fase
do torneio argentino. Na época devia entender bulhufas.
Lembro
também do povo na casa da vó Teresa torcendo contra a Argentina na
final, porque por lá uma tal ditadura comia solta e a Holanda era um
time legal. Por mim, não. Gostava do nome "Kempes" e de
"Ardiles", que me lembrava ardido. Torci pela Argentina.
Soubesse do mundo, talvez não.
Mas
o encanto, mesmo, arrebatador, foi em 1982. Na verdade, o mundial da
Espanha é o único que existiu. Tudo depois foi mero simulacro,
invenção. Valdir, Leandro, Oscar, Luisinho e Junior, Falcão,
Sócrates, Cerezo e Zico, Éder e Chulapa. E Paulo Sérgio, Edivaldo,
Juninho, Edinho e Pedrinho, Batista, Renato Pé Murcho, Paulo
Isidoro, Dirceuzinho, Dinamite. E Carlos, terceiro goleiro. E Telê.
E Careca cortado, machucado. Daquela copa guardo memórias infindas,
cheiros, gostos, choro. Muito choro. Zoff até hoje é carrasco.
Aquela bola do Oscar tinha que entrar, tinha, tinha... Paolo Rossi...
nem me fale.
Mas
é a copa do goleiro Arzur de Honduras. Do jogo do Kuwait que o
sheique tirou o time de campo. Da partida que nunc acabou, França e
Alemanha. De Tresor. Dos Camarões de Roger Milla e Nkono. De Dasaev.
Enfim, tudo como se fosse ontem mesmo. Até aquele maldito apito
final no Sarriá.
Gosto
de Copa. Mais, muito mais, do que gosto dos times do Brasil. Destes,
confesso, meu último foi o de 90. E em 2002 tive alguma simpatia. E
em 2006 um único flash, quando Rogério foi para o gol no jogo
contra o Japão. Mas de copa... ah... de copa eu gosto. Gosto de
pensar os jogos, de narrá-los antes e depois. De fazer jornadas
esportivas em rádios imaginários onde eu sou comentarista e
narrador. Gosto do riscado todo. De saber dos times, dos países, dos
craques. Das torcidas, roupas, coloridos, holandesas, suecas,
dinamarquesas, camaronesas.
E
por isso vivo contradições com a copa aqui no Brasil. Desde o
começo achei que esse lamentável gesto político do governo Lula,
de se atracar na alcova dos negócios com a cartolagem de Teixeira e
Nuzman, e todo o couvert que vinha junto, um enorme, retumbante,
estrondoso equívoco. E mais: um gesto abjeto para agradar
financiadores de campanha e gente que suga o mundo. Porque aquele
sonho de moleque, a copa aqui no quintal, foi transformado numa
imensa festa de gosto duvidoso, de gente de smoking e summer, caras
fétidas e cifras astronômicas. No fundo, bem no fundo, o lulismo
foi isso: um triturador de sonhos e de boas ideias em nome das
conciliações "do possível". Para continuar a festa do
andar de cima, um pacto de classes onde pé e bunda permaneçam no
mesmo local de sempre.
A
organização da copa foi um triste espetáculo de farras e orgias
com grana e miserê. Em nome da tal copa gente foi removida, obras de
arte foram erguidas, orçamentos se multiplicaram. Na ambição
inicial era a Copa o momento de afirmação dos anos dourados do
Brasil de Lula, a confirmação do brasileiros que não desistem
nunca, a glória da nação forjada a conquistar seu lugar no panteão
do G8, G9, G10. Mas para tanto era necessário, imprescindível até,
que se enfrentasse determinadas questões chave de nosso desenho
social. As empreiteiras teriam que seguir um cronograma rígido, para
que obras e estádios fossem entregues em bom tempo e bom estado.
Para isso era imperioso exercer o poder de fiscalização e de
gestão, penalizando empresas, cobrando projetos, exigindo
compromissos. E aí a singela esperança de que isso ocorreria
independentemente de confronto gerou este estado catatônico, que
mescla atrasos, incompreensões, dados fora de foco e da realidade do
país. Gente removida por nada, por obras que nem prontas estarão.
Erros de planejamento. Benesses para os de sempre e, pior, sem
nenhuma exigência. As empreiteiras sorriem. Mas os empresários,
patrocinadores, a tal da FIFA sorriem bonito, fartos, comendo com
opulência pratos de caviar e fígado - de ganso e os nossos.
Era
a hora de ter exigido que a seleção brasileira jogasse aqui. O
futebol define o país, é um dos elementos mais bonitos que forjam
nosso país. A identificação com a seleção seria vital para que
este processo de construção de estima, de elevá-la, fosse
concretizado. Não é errado dizer que aqui, um país novo, com uma
história oficial que infelizmente ignora o período anterior à
dominação e exploração colonial, o futebol é um elemento chave
da cultura. Nossos heróis são Leônidas, Mané, Didi. Mas para essa
gente que pensa em cifras e babados isso pouco importa. E lá vai a
"canarinho" jogar no "Emirates Stadium", nos
Estados Unidos, na Suécia, na sei lá onde, um circo exaltação
para gringo ver. Aqui, só pela televisão. E ainda por cima só numa
televisão, porque não se pensou, ao menos durante a organização
do mundial, nos jogos e amistosos do Brasil serem transmitidos por
emissoras públicas, sem monopólios. Afinal, para quê comprar essa
briga?
A
copa foi um erro miserável. Um golpe de punhal nas costas. Uma
traição. O mal estar que a copa vai causar, e já causou, destroça
esperanças e expectativas daquele Brasil que o lulismo fazia crer
ter chegado a hora. Não sei se os slogans de "não vai ter
copa" estão errados ou certos, porque não dialogam com a
alternativas outras que não o da não realização, mas sei que o
mal estar, o incômodo, o gosto acre, estão aí. Nem bolões, nem
decorações bonitas e coloridas, nem pagodes estamos a fazer com
entusiasmo. É tudo um borocoxô de banzo, saudade de algo que não
tivemos.
Vai
ter copa, sim. E provavelmente vai ser legal. Não pelo Brasil
seleção nem pela organização. Mas porque os jogos de copa são
assim, pequenas histórias, epopeias, jornadas. Quem viu Uruguai e
Gana na última copa sabe disso, com aquelas belezas que emocionam. E
nunca, nunquinha, a questão central é torcer ou não pelo time
Brasil ou da CBF. Isso é bobagem. A seleção emociona a quem quiser
se emocionar. Se jogar bem, então, onde bem e bonito são sinônimos,
aumentam as chances de adesão.
A
questão, infelizmente, é outra. E me parece que Ronaldo, o
fenômeno, dá todas as cartas e pistas. Numa daquelas demonstrações
colossais de maucaratismo com oportunismo, ele, organizador da copa
no país, sai a atirar no governo federal pelos erros e atrasos em
obras, olhando com tesão para um dos candidatos da oposição. O
governo federal que escolheu Ronaldo como interlocutor do governo na
organização da copa fica a se defender, torcendo para que o lance
do craque não dê carta na manga alheia. E a empreiteira, feliz,
sorri, na transmissão exclusiva da rede de televisão da novela das
oito - que passa a dez da noite... - com a cerveja multinacionalesca
paga no cartão de crédito do bancão que mais cresceu no mundo. A
FIFA divulga balanço: nunca dantes na história das copas faturou
tanto.
Vai
ter copa. Mas já não teve.... não teve.