sábado, 19 de fevereiro de 2022

Sobrevivamos!

Todos nós em algum momento viramos... estatística. Algumas mais frias, algumas mais importantes, muitas e muitas sem nenhum sentido. Mas é um destino, inescapável. 


Pois bem... nesta semana que passou me transformei numa. Que escapei por muito tempo e cuidado. Testei positivo para Covid, nestes testes de farmácia. E quanto medo apareceu ali naquele segundo. Medo, raiva, angústia e alívio, muito alívio. Foi o farmacêutico colocar o líquido no sensor, destes que lembram os testes de gravidez e prum: os dois risquinhos se preencheram. Meus sintomas foram leves: uma irritação na garganta, que mais me lembrava aquelas irritações causadas por excesso de ronco ou refluxo. Um pouco de catarro e uma dorzinha de cabeça insistente, renitente, lá no fundinho, contínua, uma linha. E o outro sintoma, a melancolia e o desânimo. Estas duas últimas, difíceis de lidar também.


Na semana anterior tinha tomado decisões importantes: voltei a frequentar o centro da cidade, onde fica meu escritório. Local que faz parte da minha vida: o prédio do escritório, o café da esquina, a lotérica. A banca de jornal. O pão de queijo, o mate, os "bom dia" em profusão, o "como é que estão as coisas?". Papeei com o dono do café e na lotérica. Puxa vida... a vida parou em 2019 e a gente pouco se dá conta disso. Eu compro tíquetes do café e a última compra foi em 2019. Cinquenta cafés. Ainda tem mais de trinta... 


Também comecei a atender mais pacientes presencialmente, na minha paralela vida de psicanalista. A análise pode ser feita online... mas ali, no consultório, entre olhares e corpo, a análise tem outra vida. Melancolias, desânimos, luto. 


Luto, de lutar... e de sobreviver. 


Eu tive - tenho, talvez, sim - muito medo de morrer nesta pandemia. Sedentário ao extremo, alguns excessos de comida e bebida, muito trabalho, durmo mal, me acho presa fácil a algo desconhecido e mortal. Gente próxima morreu. Amigos morreram. Saudade e raiva. A pandemia ainda é um monstro, de garras afiadas e na espreita, sorrateira, desconhecida. Mas muito se fez. Meus sintomas leves indicam que as vacinas foram eficazes, diminuíram o ímpeto do vírus. Também muito se estudou e aprendeu sobre o vírus. Talvez nunca mais a gente deva sair de casa sem um frasco álcool gel no bolso e devamos ter máscaras em casa, sempre. Eu tenho raiva, ódio, indignação. O Brasil nos matou. Este governo de merda nos matou. Porque a gente não teve vacinas antes, porque faltou solidariedade e empatia, organização. Porque temos um cretino propagando mentiras, vitupérios, machismos de falo murcho e que nunca foi capaz de nenhum - NENHUM - gesto de generosidade no enfrentamento à pandemia. Tudo se resume a uma demarcação de território entre imbecis, numa imensa estupidez de caráter: gripezinha, mimimi, vacina dá aids, máscara é frescura, cloroquina, ozônio no reto e um arsenal de indelicadezas, de sofismas, de perdigotos. Medo, raiva e ódio. O ódio mata e nos consome - melancolia.


E saber que tem gente que ainda crê e idolatra este cretino. Tem gente que não toma vacina, que brada e baba pelo direito de ser cretino. É a vacinação que mitiga os efeitos de circulação do vírus, dos efeitos, dos sintomas, das mortes, do luto. Vacinação é um pacto coletivo. E só sairemos deste inferno num esforço coletivo. Esta doença que nos acomete, além do vírus da covid, a estupidez, nos enferma, nos desanima, nos mortifica. Sobreviver é lutar.


E no susto de ter pego a covid, no medo de contaminar meus pais, levei uma semana tensa e ruim. Logo depois de dias intensamente felizes e importantes, de comemorações de vida - a visita de minha irmã que mora na França, o abraço de minha sobrinha, o amor, o meu filho mais velho passando no vestibular, meus filhos e filha felizes, uma relação de amor com minha companheira, os amigos e amigas, o voltar ao centro - um golpe de susto, um chacoalhar, uma tristeza. A pandemia está aí - para além, muito além do vírus.


Vacinem-se. Se cuidem. Usem máscara e álcool gel. Mas, sobretudo, comemorem a vida, comemorar os afetos, alimentar-se de afetos, carinhos, alegrias, sorrisos, delicadezas, água e amor. E, coletivamente, saíamos desse inferno - sairemos. Todo dia é dia de lembrar que outro mundo é necessário e possível e que o cretinismo não é um destino infalível. 


Sigamos, camaradas.