quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Bangue Bangue à Italiana


Confissões da Segunda Paternidade


A noite boa.


Gosto de western. Ou velho-oeste. Filmes que acostumei assistir já menino, ou desde menino. E gosto dos italianos, também. Lembro de uma sessão de espaguetes na Record, nos anos setenta. Tinha uma música, tema predileto de muito de minhas memórias... “tan tan tan tararan... tan tan tan tararaaam”. Digo isto porque tenho um nome para filme de velho oeste na ponta da língua: “O assombroso significado do silêncio”. É para ser um desses dramáticos, com densidade nos temas que afetam a psique humana. Um “A Face Oculta” ou “Meu ódio será tua herança.” Quiçá, um “Bravura Indômita”. Dos últimos, é impagável o “Os Imperdoáveis”. Clint merece todos os prêmios.


Eram dez da noite. Um pouco mais, um pouco menos. Quem sabe? Naquela altura, este dado era o menos importante. Estávamos degustando, e a palavra é esta mesmo, de degustar, de saborear, de sorver, um tinto espanhol, recentemente adquirido. E como caía bem o tal. Gostoso. Preciso anotar o nome e a safra, se bem que a safra eu deixo para os enólogos. Gosto de ser amador, no vinho. Bebemos sem compromissos estéticos. E eram boas companhias, um queijo tipo meia cura, um ementhal, um outro provolone. Copa. Pão. E sardela, acho. Eu e ela gostamos assim, sem compromissos. Temas variados, de novela, futebol, política, as coisas da família, a escola do menino, o dia, a política, os escritórios. Falamos até dos livros que líamos, sem o menor pudor. Gostamos assim, deste jeito. Acho que eu estava descalço. Estou sempre descalço. Ela, não. Não gosta. Mas algo estava a nos incomodar e sem querer, ou querendo muito, pensamos na mesma coisa, na mesmíssima coisa: "Os dois estão muito quietos".



Muito. Do quarto deles nenhum sinal de transtorno. Era a primeira vez em alguns dias que nenhum dos dois, naquele horário, não dava as caras. Ou para mamar ou para resmungar que não queria dormir. “Este silêncio me apavora”. Foi esta a frase que disse, interrompendo algum assunto referente a crise na formação do gabinete ministerial em Júpiter, ou Plutão, não me lembro. E ela, sem se aborrecer pela repentina mudança se assunto, assentiu com a cabeça... “Amor, estou apavorada...vai lá ver se tá tudo bem...”


Óbvio, estaria tudo bem. Os dois estariam dormindo, cada qual em sua cama, ou berço, no caso do pequeno. Um, totalmente descoberto, teria jogado toda a coberta no chão. E o outro, totalmente coberto, porque a mãe sente frio por ele, por mim, pelo outro e por ela mesmo. Mas fui, pé com pé, de fininho, observar. E era aquilo mesmo. Voltei e olhei para ela, estava mais bonita do que de costume, e emendei: “Tá tudo bem, tranqüilo.” Não agüentei, porque por dentro era só temor, e emendei, novamente: “Tranqüilo até demais....”. Ela sorriu, mas me entendeu.


Batata, batatinha. Quando resolvemos continuar nosso papo bom, sem pressa, sem abrir desesperadamente aquele chocolate comprado com gosto, ou comer aquele bolinho ou, até, aquele sorvete, para evitar que, antes do fim, tudo acabasse, começou o festival. Primeiro, foi um resmungo leve, quase não percebemos. Achei melhor, entretanto, diminuir o som. Era jazz, acho. Depois, bem, depois o que aconteceu foi aquilo que todos estão imaginando. Do resmungo, uma cólica mal resolvida. Devia ser fome, também. Do resmungo, choro. Do choro, berro. Do berro, desespero e contorção. Eu corria para um lado, para arrumar as coisas, deixar a poltrona confortável para ela. E ela tentava segurar a onda, evitar o inevitável. Como resmunga o pequeno. Será que o mais velho resmungava assim? Acho que sim, sei lá. Mas era um só, o grande. Agora, são dois. E pronto, nesse divagar ouço um berro e outro choro, e outro, dois a chorar. Não preciso escrever que algo próximo do pânico se instalou naqueles quase cem metros quadrados do apartamento. O som? Deve ter acabado o Cd durante a epopéia. Fui para um lado, ela para o outro. A cada resmungo mais alto do pequeno, o outro arregalava os olhos. “O que vocês estão fazendo com ele?” Será que era isso que ele perguntava? “Desliga esse vitrola, eu quero dormir!!!” Ou era isso? Isso ou aquilo, o fato é que demorou uma hora e pouco para o grande dormir. O pequeno, não. Dormiu antes. Cantei para os dois. Ao sair do quarto, a mãe me olhou exausta. Acho que ia dormir. Tinha a louça, pensei. O grande dormiu. Ufa. Voltou o silêncio, este muito mais próximo da realidade.


Arrumando a louça, lá de longe, cheguei a ouvir uns chorinhos causados pela barriga que se contorce e um corpo que se remexe, querendo achar posição para dormir. Ufa. Nada melhor que uma boa noite normal, tudo tranqüilo. Na medida certa, na dose exata. Fiz o meu café e fui dormir, que dali a pouco o pequeno acordou para mamar.


2006. janeiro.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Etmologias Lisérgicas II

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Um Conto Vulgar de Palavras Molhadas


Começaram a trocar palavras. Sussurros. E as palavras sabemos tem sabores, cores, cheiros, texturas. Como a pele, o beijo, o sexo, o calor e a noite. As palavras iam revelando intenções óbvias, mas o vagar e as letras iam conspirando, transpirando, elevando.


Das palavras usuais, do mel, do belo e do doce, e das carícias aos ouvidos. Do copo de água para matar a sede. A outra sede. Fluíam vontades entremeadas com fluídos ainda presentes, molhados, úmidos nas roupas de cama amassadas e desnorteadas.


Escapavam gemidos, grunhidos, arranhões e pequenos toques. E palavras nada sutis de elogio ao falo, à vulva, aos lábios todos. Todas as palavras se encaixando como o leito, o feito, o nexo, a fala, o tato. E nessas horas as palavras têm cheiros diversos, todos, entretanto, com o mesmo significado, a mesma linguagem e a tara crescente, de um pelo outro. Ou de outra, pelo um.


E as palavras seguiam o seu jogo de arrepiar peles, inebriar sabores, incendiar ambientes. E as semânticas mais simples se transformavam em objetos eróticos, daquela sanha evidente, latente, pulsante. E madeiras firmes e pequenas caixinhas de rapé molhadas vão se intercalando, abraçando, tomando gosto e ganhando uma saborosa vulgaridade, de sentidos léxicos e saliva na boca, ressecadas.


E assim deixam de ser meras palavras para serem atos, descrições, sentidos. Como um figo aberto, escancarado, sorvido, deleite. Ou uma banana rija que cresce em sabor, vigor, bojuda. E assim vão as palavras a participar do rito, borrifando pingos de suor e outros líquidos, todos juntos. Respiração.


Já não há mais palavras ditas, roupas e regras. Mas como num dicionário ou num livro de gramática, degustamos perfeitamente as frases, as orações coordenadas, os substantivos, os adjetivos e advérbios, esses matreiros conectores criando elos entre vocábulos imperfeitos. Silêncio, só os arfares. E deu para escutar um último verbo, conjugado no pretérito, antes do fim do conto...