O recreio do perna de pau
Era uma partida na quadra da escola, recreio e era a final do campeonato daquele recreio. Era a Mariana da terceira série B e eram a quadra lotada de invejosos espectadores,
o professor careca e a orientadora pedagógica. Era tudo isso e o gol
complemente vazio. O gol escancarado, pleno, absoluto, sem goleiro.
Todos sabem que o gol tem gosto daquele barulhinho da bola quando estufa
a rede, não sabem? Se desconhecem os cheiros, os sabores, as cores do
gol desconhecem praticamente tudo na vida, posso afirmar, atestar,
asseverar. Quando o João me passou a pelota,imediatamente começou a
gritar gol. Eu também. Daqueles gritos da alma, que as pernas arrepiam,
os olhos brilham, a saliva seca para depois encharcar. E a bola veio
linda, redonda, livre, liberta. Os pés a beijaram, um ósculo
maravilhoso, um encontro perfeito. E não era hora de maravilhas e cousas
dificílimas: era deixar o beijo e correr para o lado da Mariana,
sorrindo e gritando “GOL”. Simples, fácil, grandioso, apoteótico. Ouvi o
grito do João, o piscar da Mariana, a ofegante orientadora dizendo que o
intervalo tinha acabado. E o apito do professor careca. E o barulhinho
da macia rolando pela quadra... GOOOOOOLLLLL.... Traff. Traff?
Aquele som nada tinha de glória, nada tinha de golo, nada tinha de Mariana, nem de recreio. Era
a gorduchinha abraçando a trave com gosto e saindo dizimada pela área.
Eram meus nervos todos caindo no chão, a anedota, a ignomía, o palavrão
do João, o riso do professor careca. Era o silêncio e um monte de gente
gritando “errou, impossível, cruz credo, ave maria, ruim, perna de pau,
caçarola, grosso, besta”. Eram meus pés tropicando na própria vergonha, na própria linha do obtuso: para
mim o mundo podia, deveria, merecia ter acabado naquele átimo. Soubesse
o que era um enfarto, seria ali. E só. Caído no chão. Tento me esconder
na névoa do vexame e uma mistureba de risos, de cânticos, de morte, de
solidão e de ingratidão. E Mariana, como quem ama e ainda por cima faz
rima, ainda vem com o desfecho final: “Vem, o recreio acabou.” E dá a
mão para o goleiro, que ressuscitava nas chamas do meu inferno. Naquele
dia, morri: ali, entre as redes e a pilhéria. E nunca mais nasci igual.
23.02.2010
O original foi publicado nos Bolonistas... aqui ó: http://osbolonistas.zip.net/arch2012-02-01_2012-02-29.html#2012_02-23_16_20_19-2402205-25