Há vários momentos deste dezessete de abril de 2016 que não
saem das minhas memórias, sempre elas: Sofro, mas me nutro também, nostalgias.
Eu sou ateu, saibam. Não acredito em deus. Ao menos, não
neste deus onipresente, onisciente, pai de todos. Mas, contraditoriamente,
acredito muito nos homens e nas mulheres, suas crenças, em seus ritos, suas
alegorias, seus mistérios. Nesta casa de ideias surge então uma crença firme e
convicta em deusas, deuses, memórias, afetos, santos, santas, divindades,
forças. Acredito sinceramente numa força contínua, que nos molda, nos define,
nos faz do barro. Rezo por estas entidades, sempre que posso.
Ontem, na escadaria do Teatro Municipal, junto da Renata,
minha companheira, esperando por meus filhos e pela mãe deles, a Daniella, para
irmos juntos para a multidão que estava no vale do Anhangabaú para demonstrar
nossa profunda irresignação com o processo de impedimento da presidente Dilma,
na nossa avaliação um golpe de estado, sem baionetas, mas com a marca indelével
da hipocrisia, do cinismo e da ruptura ilegítima, me lembrei de um outro dia,
naquela mesma escadaria.
1992. Eu já trabalhava como estagiário, usava meu terno e
gravata comprado na mesma loja em que meu pai comprava os dele. Era uma loja lá
na Vila Maria, que nem sei se existe mais. Gostamos, eu e Seu Nilton, dos
ternos azuis. Eu, dos pretos. Ele, dos cinzas. Não me lembro se eram azuis,
pretos ou cinzas naquele dia. Era comício no Anhangabaú, pelo impeachment de
Collor. O telefone tocou, a tarde, lá onde eu trabalhava: “Fernando, seu pai na
linha.”
Era o começo de uma “reconciliação” política. Meu pai era um
danado de um Montorista. Para ele, era Montoro o homem público mais precioso de
todos. Em 1990, já na faculdade, eu não votara em Montoro para o Senado. Votei
em Suplicy. Meu pai tinha uma certa birra com este voto, nossa primeira
divergência. Logo com o Montoro...
“Filho, você vai ao Anhangabaú?”
“Vou, pai. Daqui a pouco eu estou indo. Devo encontrar o
pessoal lá no teatro municipal.”
“Na escadaria? A gente podia se encontrar lá, não?”
Caramba. Caramba. Era um convite e tanto aquele. De meu pai,
que me levara para comício das diretas num canto importante da memória,
camiseta amarela. Era um convite e tanto, aquele.
“Tudo bem, pai.”
Tudo ótimo. Demos um abraço na escadaria. E os dois desceram
juntos para o Vale, não me lembro mais se esperei meus amigos e amigas ou se
desci para lá só com ele. Descemos. E lá pelas tantas, o vale inteiro cantando “Olê
Olê Olê Olá, Lula, Lulá”. Olhei para ele, sabendo que ele não embarcava
naquela, apesar de ter votado no Lula no segundo turno de 1989. E, para meu
espanto, estava lá o meu pai a cantarolar aquilo que nos dava esperança – e unidade
– para aquele momento histórico.
Meu pai não pode ir ontem ao Anhangabaú. Desde 2006 está
acometido por sequelas graves de um AVC. Aquela saudade, naquela escadaria,
tocou fundo. Porque ele está internado num hospital para tratar de problemas da
rotina de quem tem incapacidades graves de locomoção e de movimento. E minha
mãe está lá, cuidando dele. E essa saudade, essa saudade marca fundo a alma da
gente. Minha mãe, Maria Helena, certamente estaria naquela escadaria a abraçar
os netos e a confortar o filho meio exasperado em emoções – ela, sempre a mais
emotiva, sempre soube lidar com esses exasperos... A vida é complexa, múltipla,
contínua...
E ontem não estava usando terno, nem gravata. Usava um shorts
e camiseta. E lá estavam os meus dois meninos vindo me abraçar. Os dois de
shorts, camisetas e sorrisos. Eu sempre me emociono, mesmo, quando vejo a Dani,
a Renata e o Tu e nossos meninos todos juntos: caceta, é possível, sim, um
mundo sem cara feia, sem muxoxo, sem posses dos outros. E mais uma vez
estávamos lá, a família, indo para a praça. Não, não vai ter golpe.
Há uma foto que tiramos ontem, que vou guardar. Estamos lá
todos nós: Eu, a Rerrê, a Dani, o Marco, o Leonel e minha tia Marisa, irmã do
meu pai. Num Anhangabaú que sabia que viria a derrota numérica - tínhamos uma
quase certeza do fato escondido por de trás de uma esperançazinha de fachada,
mas bela, potente, reluzente – mas com aquele ar vivo de disposições por novos
amanhãs...
“Pai... já foi, né?” Era a mensagem no meu celular, porque a
gente foi embora do Vale antes do fim da votação.
“Já.”
“Que ruim, né?”
Os dedos sem saber o que responder...
“Mas a vida da gente é assim. A gente tem que lutar por
aquilo que acha justo e certo. E a gente tem muita coisa bonita para defender.
Muita. Incluindo você e teus irmãos. Te amo. Muito”.
A resposta foi um daqueles rostinhos de uátizapi, sorrindo.
E a gente entende porque a alma da gente é daquelas forças
incríveis, única capaz de sorrir e chorar, ao mesmíssimo tempo. Tempo? Não sei,
tem algo divino que transcende isso aí...
2016. abril, 18.