segunda-feira, 18 de abril de 2016

Também para Gudin e Caetano: Um velho ateu a ver milagres




Há vários momentos deste dezessete de abril de 2016 que não saem das minhas memórias, sempre elas: Sofro, mas me nutro também, nostalgias.

Eu sou ateu, saibam. Não acredito em deus. Ao menos, não neste deus onipresente, onisciente, pai de todos. Mas, contraditoriamente, acredito muito nos homens e nas mulheres, suas crenças, em seus ritos, suas alegorias, seus mistérios. Nesta casa de ideias surge então uma crença firme e convicta em deusas, deuses, memórias, afetos, santos, santas, divindades, forças. Acredito sinceramente numa força contínua, que nos molda, nos define, nos faz do barro. Rezo por estas entidades, sempre que posso.

Ontem, na escadaria do Teatro Municipal, junto da Renata, minha companheira, esperando por meus filhos e pela mãe deles, a Daniella, para irmos juntos para a multidão que estava no vale do Anhangabaú para demonstrar nossa profunda irresignação com o processo de impedimento da presidente Dilma, na nossa avaliação um golpe de estado, sem baionetas, mas com a marca indelével da hipocrisia, do cinismo e da ruptura ilegítima, me lembrei de um outro dia, naquela mesma escadaria.

1992. Eu já trabalhava como estagiário, usava meu terno e gravata comprado na mesma loja em que meu pai comprava os dele. Era uma loja lá na Vila Maria, que nem sei se existe mais. Gostamos, eu e Seu Nilton, dos ternos azuis. Eu, dos pretos. Ele, dos cinzas. Não me lembro se eram azuis, pretos ou cinzas naquele dia. Era comício no Anhangabaú, pelo impeachment de Collor. O telefone tocou, a tarde, lá onde eu trabalhava: “Fernando, seu pai na linha.”

Era o começo de uma “reconciliação” política. Meu pai era um danado de um Montorista. Para ele, era Montoro o homem público mais precioso de todos. Em 1990, já na faculdade, eu não votara em Montoro para o Senado. Votei em Suplicy. Meu pai tinha uma certa birra com este voto, nossa primeira divergência. Logo com o Montoro...

“Filho, você vai ao Anhangabaú?”

“Vou, pai. Daqui a pouco eu estou indo. Devo encontrar o pessoal lá no teatro municipal.”

“Na escadaria? A gente podia se encontrar lá, não?”

Caramba. Caramba. Era um convite e tanto aquele. De meu pai, que me levara para comício das diretas num canto importante da memória, camiseta amarela. Era um convite e tanto, aquele.

“Tudo bem, pai.”

Tudo ótimo. Demos um abraço na escadaria. E os dois desceram juntos para o Vale, não me lembro mais se esperei meus amigos e amigas ou se desci para lá só com ele. Descemos. E lá pelas tantas, o vale inteiro cantando “Olê Olê Olê Olá, Lula, Lulá”. Olhei para ele, sabendo que ele não embarcava naquela, apesar de ter votado no Lula no segundo turno de 1989. E, para meu espanto, estava lá o meu pai a cantarolar aquilo que nos dava esperança – e unidade – para aquele momento histórico.

Meu pai não pode ir ontem ao Anhangabaú. Desde 2006 está acometido por sequelas graves de um AVC. Aquela saudade, naquela escadaria, tocou fundo. Porque ele está internado num hospital para tratar de problemas da rotina de quem tem incapacidades graves de locomoção e de movimento. E minha mãe está lá, cuidando dele. E essa saudade, essa saudade marca fundo a alma da gente. Minha mãe, Maria Helena, certamente estaria naquela escadaria a abraçar os netos e a confortar o filho meio exasperado em emoções – ela, sempre a mais emotiva, sempre soube lidar com esses exasperos... A vida é complexa, múltipla, contínua...

E ontem não estava usando terno, nem gravata. Usava um shorts e camiseta. E lá estavam os meus dois meninos vindo me abraçar. Os dois de shorts, camisetas e sorrisos. Eu sempre me emociono, mesmo, quando vejo a Dani, a Renata e o Tu e nossos meninos todos juntos: caceta, é possível, sim, um mundo sem cara feia, sem muxoxo, sem posses dos outros. E mais uma vez estávamos lá, a família, indo para a praça. Não, não vai ter golpe.

Há uma foto que tiramos ontem, que vou guardar. Estamos lá todos nós: Eu, a Rerrê, a Dani, o Marco, o Leonel e minha tia Marisa, irmã do meu pai. Num Anhangabaú que sabia que viria a derrota numérica - tínhamos uma quase certeza do fato escondido por de trás de uma esperançazinha de fachada, mas bela, potente, reluzente – mas com aquele ar vivo de disposições por novos amanhãs...

“Pai... já foi, né?” Era a mensagem no meu celular, porque a gente foi embora do Vale antes do fim da votação.

“Já.”

“Que ruim, né?”

Os dedos sem saber o que responder...

“Mas a vida da gente é assim. A gente tem que lutar por aquilo que acha justo e certo. E a gente tem muita coisa bonita para defender. Muita. Incluindo você e teus irmãos. Te amo. Muito”.

A resposta foi um daqueles rostinhos de uátizapi, sorrindo.

E a gente entende porque a alma da gente é daquelas forças incríveis, única capaz de sorrir e chorar, ao mesmíssimo tempo. Tempo? Não sei, tem algo divino que transcende isso aí...

 2016. abril, 18.


  




Um comentário:

Anônimo disse...

Que texto lindo, Fernando. Lindo, lindo, lindo. Que beijo na alma da gente. Beijão, nego. Deco.