sábado, 18 de abril de 2020

Outros outonos virão


O pior de tudo, de tudo mesmo, é que esta vivência de morte e de obscurantismo que temos na canalhocracia de Bolsonaro nos desalimenta, nos desalinha, nos desespera.

Imagino o quão imbecis, esfericamente imbecis, são estes que saem em "carreata" para fazer coro ao idiota que ocupa o cargo de presidente da república. Ou, ainda, aquele cretinismo basculante de quem até picolé faz de cloriquina, como uma dádiva ou cousa assim.

Mas cretinos e os imbecis estão vencendo. Porque é muito perturbador enfrentar o obscurantismo. Onde queremos um pingo de razão ou lucidez temos um coquetel de raiva, rancores, ressentimentos e de um exercício de narcisismo entre o patético e o doentio. É broca, muito.

Porque todos estamos preocupados, todos. Com o vírus, com a doença, com os hospitais cheios, com a morte. E com a crise, com o desemprego, com a pauperização, com o aumento da violência. Só um canalha de alta patente para colocar estes sentimentos e sensações como antagônicas. Só um canalha. Este antagonismo, construído, forjado, malcriado é prova da total incapacidade do atual presidente - e, infeliz e morbidamente, de seu séquito e de boa parte de seus eleitores - de ter sentimentos como empatia, solidariedade, reconhecimento do outro. Só o que vale é a própria opinião e que se fodam-se os outros, os "inimigos", os "opositores".

Estamos num breu. Total. Porque nesta lógica de morte, qualquer movimento vira instrumento para mais mentiras, mais manipulações grosseiras, mais violência verbal, corporal e de perdigotos. E vem um sentimento de solidão, de travo, de azia. Mas temos que nos movimentar. Antes que seja tarde - e me parece tarde, muito tarde. A fratura que se construiu na sociedade brasileira pode ser que não tenha mais tala que cole.

De novo, divergências de opinião, leituras diferentes e proposição de saídas diferentes e múltiplas, são naturais, são essenciais. O que não é tolerável é esta perversão no trato, no discurso, na prática - esta perversão é canalha.

Eu escreveria, por fim, que tá osso. Mas seria de um pessimismo atroz. Também precisamos de algum afeto e de algum movimento de esperança ou de amor - palavrinhas que ficam meio tontas neste quadro todo de horror. Deixo então o meu mais forte abraço a quem chegou até aqui. Um abraço demorado, com gosto de sol em fim de tarde num outono qualquer.

Vai passar, camaradas.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Acalento


O que causa enorme desalento - e, poucas vezes uma palavra pôde definir tanto - é acordar para frear desejos: o do abraço, o do café na esquina, o do beijo, o da caminhada, o do flerte, o oi cuspido. Mas é muito mais pensar naquilo que poderíamos e não seremos. A derrota é a da empatia, da solidariedade, da razão e da fé, no ser humano - essencialmente.

As ruas estão se enchendo. Os “isolamentos” estão se afrouxando. Mas notem, o que se afrouxa é para dar resposta a alguma questão individual, egoísta ou de sobrevivência, manipulada por um discurso doente que separa a sociedade, que lhe tira o viço e lhe coloca a focinheira do medo.

Todos estamos com medo. Um dos conceitos mais importantes na psicanálise é o do desamparo. Das caraminholas que inventamos e criamos para dar tratos ao desamparo, uma sensação de desconforto, de temor, de solidão e das questões todas que brotam quando em desalinho. Talvez não tenhamos tantos subsídios, entretanto, para enfrentar o desalento.

Ninguém que está indo para a rua, rompendo a política de isolamento social, está fugindo de suas solidões, assim, no plural mesmo. Se vai para a rua sozinho, solitário, em solidão e com medo, uma falsa coragem. É interessante este paradoxo: hoje, para combater a solidão, é preciso estar só. O isolamento é, no frigir do ovo, uma política que tenta adiar a solidão, evitar o contágio de um vírus que promete não só a letalidade, mas, sobretudo, a velocidade dos dias atuais, da modernidade, do capital, do tudo para ontem.

Daí, o desalento. Sim, tem desamparo. Mas quando se elabora o desamparo, quando se acessa os instrumentos para encarar este desafio que nasce quando a gente nasce, temos a sensação fria e cortante da rua repleta de gente, sozinha, solitária, egoísta - no sentido mais do perverso do que do narcísico.

É o desalento.

Enquanto deveríamos estar gestando, pensando, sonhando formas possíveis de novos tecidos sociais, de vida, de trabalho, de solidariedade, de enfrentar as fomes diversas, estamos sendo jogados e tragados pela patologização do normal, tentando manter uma normalidade tóxica, que exige de nós a solidão da sobrevivência.

Todo mundo tem que seguir adiante. Pode ser, mas não deixa de ser desalentador este acelerar inexorável do tempo, que transforma o tempo em objeto para consumo imediato. Logo o tempo, esse estado que podia ser dos desejos, das delicadezas, daquilo que nos faz gente.