sexta-feira, 27 de novembro de 2009

"Para que rimar, amor e dor?"

Escrevia para ela todos os dias, fosse feira ou não. Sempre palavras de amor, cartas e mais cartas de amor. Loas à pele, aos cabelos, aos traços, aos jeitos, ao sorriso, à sapiência, aos bons modos. Cultivava, com palavras, profunda devoção. Escrevia por horas a fio, procurando a exatidão do sentimento mais bonito. E era por quase todo o santo dia que trilhava esta missão, este culto, esta lida.


Algumas cartas encaminhara. Pelo correio, pelo florista, pela rede de computadores, pela sorte. Outras guardara, como pergaminhos, encíclicas, testamentos. Não duvidava, e não aceitava debates, daquele amor infindo e puro, mas cruel. Pulsante. Seu coração tinha dona. Mais que isto: tinha uma deusa.


Sim, a indiferença dela o destruía aos poucos. Envelhecia, com dignidade é verdade, a cada resposta evasiva, a cada pétala morta, a cada letra não lida.


E um dia exagerou, sem querer, no cálice. O tinto descera tão suave que teve febre, calafrios. Um calor de paixão. As letras mudaram de rumo, tomaram outras paradas. Escreveu loucamente sobre pernas entrelaçadas, coxas molhadas, sexos tocados, maneios, devaneios, línguas, bocas, sumos, sucos, suores. Escreveu num ritmo apressado, sem olhar para trás. Esqueceu da gramática, das rimas, das conjugações precisas, das palavras escolhidas no dicionário. As letras foram escritas pela rua, pelo vinho, pelo falo irriquieto, pelas putas.


Ainda em febre, ia rasgar o papel escrito em letra bamba. Pecados. Mas antes que ele desistisse, súbita, ela adentrou ao quarto, cheirando a casa limpa. Arrancou-lhe das mãos a carta, decidida a colocar um fim, um ponto final, o termo naquela insanidade platônica. Tinha um ar esguio, jovem, sem complacência. Tomou a última carta, feroz. Rasgou a carta ao meio, dizendo em plácida educação: "Não gaste mais este belo verbo. Conjugue para outra que te mereça".


Ele, aturdido, mas ainda com febre, já não pisando mais no chão: "Leia esta ao menos, a última.".

Dois dias depois, numa casa com cheiro de azedo, foram encontrados os corpos. Sem arfarem, despidos, na varanda escancarada. Era noite quente de lua cheia.


09. novembro

2 comentários:

Eliana Klas disse...

Perfeito!
...fiquei desnorteada de decepção quando ela rasgou tão pulsante versos sem ler...sabia que eles a conduzirias aos braços dele.
Muito bom!

ex-amnésico disse...

Vinho quente, sangria literal; conheço essa agonia, só não vivi o final.

Poeta é quem sabe viver na sua, a vida dos outros!


Fogos de artifício mnemônicos.