sexta-feira, 7 de junho de 2013

Películas Protetoras, Amém.






Outro dia comprou um revólver. Disse que se sentia muito inseguro, rua escura, gente má e tudo mais que é isso mesmo que dá, que medo é assim, quando toma, contorna a alma com filme preto. Outro dia, usou a arma.


Era manhã e saindo cedo, e atrasado, suava desenganos diários: a hipoteca, a escola das crianças, o carro, o carnê da televisão mega polegadas, o carnê da carne, o desodorante, a fama que não veio, o chefe, o logro, a covardia, o atraso na hora de acordar, o atraso e não tomou café, o atraso e a dívida com a esposa, de carinho.


O trânsito caótico. Já fechara uns dois outros apressados, já passara buzinando por cima da faixa de pedestre, estava atrasado sempre pensava que nessas horas também deve levar em conta relógio, condomínio e livro de ponto, xingou a moça braço, xingou de velho, xingou de bicha, gritou. E evidente, dentro do carro era assim. É como minha casa, porra, faço o que bem entender, caralho.


Engraçado que o mesmo filme preto que encobre a alma, nos casos do medo, é aquele que cobre os vidros do carro. Tenho medo de ser assaltado e o filme dificulta que os ladrões me vejam, me notem, me invejem, cobiça, atiça, lixa. Mas é o mesmo filme que protege a mãozaça na buzina porque aquele filhadaputa me fechou. E também impede que se olhe no rosto daquela outra, que, pacientemente, deixou vez no cruzamento, na rotatória, mesmo tendo a preferencial. Não se olha nem para agradecer, é o filme que me protege. Bege, opaca, cinza, nula, óbvia, ridícula.


Mas foi o maldito que desceu do carro. Como imaginar que ele só queria conversar, veio tão bravo, tão puto, tão armado de gritos. Bom, vou dar um susto nele, abaixa, pega a arma, sai gritando: “e agora, palhaço, vai ficar manso?”. Tomou um tapa na cara. Um tabefe, que ressoou avenidas, ruas, alamedas, a moça do carro ao lado, o que vão pensar, o que vão pensar, o que vão pensar. Atirou. Pelas costas.


O mesmo filme preto, a arma, o corpo na hora morto, mote, anote: fim.

13. junho, 07.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ah, as películas que recobrem os vidros dos carros, a vista dos outros, os outros da vista...como elas me incomodam! Bom saber que estou em sua companhia, meu caro! Começava a achar que a loucura era só minha...

PS: adorei a sequência de desenganos diários, especialmente, o ápice: "o atraso e a dívida com a esposa, de carinho" - poesia pura!