Caçulê tem sido o nosso termômetro.
Sim, a guia e o farol da casa em quarentena. É ela que mais impactada pela
mudança de rotina e pelas restrições: de sair na rua, de brincar na escola, de
abraçar a prima. E é ela que demanda nossas atenções, para brincar, para comer,
para ajudar nas coisas do dia a dia.
A paixão dela pelos irmãos, mais
velhos, que passam semana sim semana não em casa, revela um tipo de relação fraternal
nova para todos nós. Que vai da admiração, que vai do querer brincar, que
disputa espaço, que brinca e joga entre cartas de Uno e diferenças de idade e percepções. Mas que quer o abraço, a companhia, a piada - sim, ela e eles
se cutucam, "piadam-se" entre si, se irritam e, evidentemente, nos
irritam. Ela ainda grita e chora, ocupa seus espaços e demonstra sua lamúria
deste jeito, estridente.
Ela talvez tenha sido a primeira a
entender o extraordinário - não no sentido de algo fantástico, maravilhoso,
estupendo, mas no sentido de raro, de mudança, de quebra de rotina e de
paradigma. É ela que demonstra impossível ter atividades escolares à distância
dentro de uma rotina normal. Ela não quer e não fica na frente da tela. Identificou
ali uma condição que depende de sua vontade, do seu desejo - assiste os vídeos
que a escola manda quando lhe dá na veneta. Interage com os amigos e amigas de
escola do jeito que dá e não finge que tá tudo bem quando não escuta pelo áudio
completo e entrecortado as vozes de professora e dos colegas. Tem a sinceridade
cortante das crianças. E inventa histórias.
Ela brinca o tempo todo? Não. Já fui
filho, vô, o João e o Mateus, o Marshall da Patrulha Canina. A mãe... a mãe já
foi filha, vó, irmã, princesa Léia. Ela? Ela já foi mãe, filha, a tia Lu ou a
tia Carol,a mulher maravilha e a Corujita. Sua amiga imaginária - sim, ela tem
uma amiga imaginária muito presente, a Saíga, apronta bastante e zoneia a casa
e nunca arruma a bagunça.
Embora cozinhemos muitas coisas entre
panelinhas e fogão de plástico, embora faça da mesa de canto um imenso
supermercado e mie como gata, Caçulê as vezes está de mau humor. Sim, brava,
irritadiça, não mexa comigo. E as vezes só quer ver tv, só isso. Só isso.
Puxa, entender esse "só"...
as vezes - sempre - é tão difícil para nós, né?
E ontem, abraçada com a mãe numa
dessas rotinas, olhou para ela e disse, com os olhos marejados: "Eu quero
abraçar alguém."
"Quem filha?", perguntamos.
"Qualquer um, na rua, mãe. Que não a gente aqui de casa.".
Tem uma tristeza aqui. Misturada com uma beleza infinita. A menina, na quarentena, descobriu o mundo antes que nós.
2 comentários:
Olá, Fernando! Tudo bom?
Que surpresa notar que a quarentena fez com que você desenterrase o blog adormecido.
Fiz o mesmo. E comecei a ver os que frequentava na minha época "jovial".....hahhhahhaa!
E cá estava o seu ativo.
Venho lá de 2008, numa lata do passado, ver o que acontece no presente pandêmico das pessoas.
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