Outra vez a
Niara de Oliveira, uma "tuitocamarada", propôs uma "blogagem coletiva".
Da primeira vez a proposta foi escrever algo para
a campanha pelo fim da violência contra a mulher, como forma de contribuir na tuitosfera e na blogosfera para as ações do dia 25 de novembro. O resultado foi que esta quitanda aqui pode, ainda que discretamente, contribuir para um processo generoso, solidário e de reflexão, sobre um tema muito importante. Não se muda o mundo só com letras. Mas não se muda o mundo sem elas.
Desta vez a proposta é escrever algo sobre a campanha pela abertura dos arquivos da ditadura militar no Brasil. E este tema me é, particularmente, muito caro. Quando fui gestão no Centro Acadêmico XI de Agosto do Largo São Francisco, na primeira gestão do grupo "Rasgando o Verbo", das cousas que mais me orgulho na vida, em 1994, a ditadura completava 30 anos e nós resolvemos organizar uma semana de debates e intervenções que chamamos de "64 Nunca Mais". Na imprensa da época era comum os "democratas" de plantão dizerem que era importante contar os "dois lados" da história, reconhecendo os "avanços" na economia e etc. Para nós este discurso era uma ofensa. Ainda é. A ditadura e seus mecanismos sórdidos de manutenção já tinham contado sua versão do perigo vermelho e do "ame ou deixe-o". Era fundamental conhecer e dar voz ao outro lado, o lado dos que se opuseram, resistiram e lutaram.
Foi durante aquela semana de debates que conheci Amelinha Telles e Criméia. A Criméia foi entrevistada pela Niara e foi esta entrevista que deu origem a esta blogagem coletiva. A Amelinha, a Criméia, a Janaína, o César, o Ivan Seixas, todos familiares de desaparecidos políticos, me ensinaram que nunca este país vai poder ser soberano, independente, altivo, sem contar para todos a sua história. Sem reconhecer que o que houve no Brasil na ditadura militar não foi uma "guerra". O que ocorreu foi massacre, execução, assassinatos. A tortura é inaceitável. A tortura como método de estado é intolerável. A tortura é execrável, em qualquer situação. Levar alguém aos porões do estado, ao subterrâneo, ao lodo, não é enfrentar o "inimigo". Isto é perversão.
O texto que saiu foi este aqui. Este blogue é um local para crônicas, contos, poemas e algumas outras reflexões. Assim é que resolvi dar minha contribuição. É ficcional, antes que me perguntem quem é Mané. Mané somos todos nós.
Por fim, um grande beijo na Amelinha, na Criméia, no César, na Janaína, na Teresa Lajolo, na Mariluce Moura, na Elisa e na Tessa, no Ivan Seixas e em vários outros e outras camaradas. Foi uma das mais belas lições de vida que eu já tive. Obrigado.
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Onde ele está?
Desde aquela noite, fatídica e maldita noite, trinta de outubro de mil novecentos e setenta e um, vinte e três horas e vinte minutos, não há mais dia, nem tarde, nem dia, nem tarde. E a noite que dura, não tem lua, não tem fim. Levaram o Mané. Arrebentaram a porra da porta, chutaram tudo, derrubaram tudo, bateram em tudo. E levaram Mané.
Não era um carro de polícia. Era uma kombi. Nunca mais pude ver kombis. Nunca mais pude sentir o cheiro de colônia barata daquele filha da puta que esmurrou o João, antes de levarem o Mané. O canalha, o calhorda, o “machão”, desceu a porrada, mas tinha mais uns quatro gorilas com ele. Filha da Puta. E ria, ria nojentamente, escrotamente, despudoradamente. E o jeito que me olhou, o canalha podre...
Levaram o Mané e nunca me disseram para onde. Nunca mais vi Mané. Nunca mais soube dele. Minto, alguns depoimentos diziam que Mané esteve naquele prédio ali na General Osório. E que gritava muito. Mas só. Só este relato e nada mais. Incontáveis audiências, périplos de delegacia em delegacia, quartel em quartel. Audiências na Justiça Militar. Inquéritos, advogados, tapinhas nas costas, “vamos encontrá-lo” e nada. Levaram o Mané. E foi assim.
Mané era, sim, guerrilheiro. Tinha sonhos, defeitos, virtudes, cabelos pretos e olhos castanhos. Não tinha diploma, não tinha mais cédula de identidade válida. Comunista, amigo, solidário e tinha medo de voar. Por isso, ficou. Mas nem isso me deixam saber. Levaram Mané e daquela noite só guardo a tampa do refrigerante de limão que ele bebeu, na última refeição do pão com mortadela barata.
Me diziam, depois que era inevitável concluir que Mané não voltaria mais para mim, nem para lugar algum, que aquilo era uma guerra. Sempre achei que na guerra se trocassem tiros, os corpos eram recolhidos durante uma breve pausa, os corpos sepultados, para depois recomeçarem os tiros e as escaramuças. Sempre soube que em guerras há mortes, feridos e até corpos dilacerados, nunca mais recompostos. Mas de Mané, não sei nada. Até hoje ainda sonho, ele barbado, magro, sujo, mas entrando pela porta de casa. A mesma casa, porque de lá só me mudo quando Mané chegar, ainda que em letras miúdas de um papel amarelado, mofado, com traças.
Depois me diziam que era preciso mudar as coisas. E que mudando “as coisas” eles abririam os arquivos para que as famílias pudessem encontrar ossos, corpos, cinzas ou nada além da data certa, do fato inexorável e do ponto final. Mas as “coisas” mudaram, mudaram de novo e ainda assim aquela maldita noite não acaba, não há lua, nem janela, nem vento, nem nada. Levaram Mané.
Agora me dizem que Mané pode ter denunciado alguém, que torturado, machucado, violentado, pode ter dedurado algum colega. Ou, pior, que o João, que também apanhou naquele e em outros dias, foi quem tinha dado a informação dos paradeiros de Mané nos tempos em que Mané era Duílio. Como se fosse possível torturar outra vez, prolongar o choque, o pau de arara, o arame, as sevícias. Mas eu só quero Mané. Eu só quero acertar os ponteiros do relógio vermelho, ainda pendurado na parede da cozinha, para que meus outubros voltem a ter trinta e um dias... Só....
11. fevereiro, 05.