domingo, 26 de janeiro de 2014

Sobre fuscas e o aniversário da cidade

 

Ontem foi aniversário da cidade. E a cidade, estranhamente, estava bonita. Não pelo sol: inclemente, clamando protetor. Mas pelo conjunto de gentes andando, caminhando, metropolitando, onibusando, bicicletando.

No Memorial da América Latina, ali na Barra Funda, sambistas da "Camisa Verde" faziam uma espécie de ensaio para porta bandeira e mestre sala, além das baianas. Foi legar ouvir o "É noite, agora... chora viola...São Paulo tem convite para dar... Verde e Branco é um encanto...o show vai começar....", samba de alguma década final do século passado e que deu título à escola.

Uma pena o estado de abandono do Memorial. O Governo do Estado de São Paulo é assim mesmo, deixa fluir, até que um dia um imbecil venha dizer que é melhor privatizar. A placa da estátua da "mão" do Niemayer, a que parece a América Latina, o sangue, uma obra bonita, tá lá... pedindo uma manutenção... clamando atenção... quase chorando. Mas não tem porque fazer isso, né...

Depois, o Metropolitano. A estação Barra Funda. É bom passear de metrô. Os meninos gostam, sinceramente. Eu gosto. Mas alguém precisa explicar para quem cuida do metropolitano, ou deveria cuidar e planejar, que metrô pode ser, sim, transporte para os dias de lazer! Sim, com intervalos não tão demorados, quem sabe, quem sabe, as pessoas não deixam um pouco o mau humor de lado. Quem sabe?! Mas essa gente que cuida do metropolitano deve estar mais interessada em outras coisas... quem sabe no preço das reformas, quem sabe na troca dos guichês de pagamento, quem sabe no lucro da companhia, quem sabe sei lá.

O centro? Ontem estava estupefactamente bonito e ocupado. Do samba na Praça Roosevelt, do "Jazz nos Fundos" na sua versão B, ali perto na General Jardim, com uma programação que incluia diversão para crianças. Do almoço no "Boi na Brasa", esta instituição do centrão do lado da República, uma relíquia, um oásis, uma porção de batata portuguesa e um chope numa caneca de metal que faz salivar só de lembrar.

E o show na Praça da República, com o som meio capenga é verdade, do Paulinho da Viola. Paulinho da Viola, fôssemos sérios, seria um país inteiro, seria feriado em qualquer cidade que ele passasse, seria noite e seriam horas e horas e horas.

A praça Dom José Gaspar, ali atrás da Mário de Andrade, linda. Cheia. O "Paribar", o "Cachaçaria do Rancho" e um samba prá lá de honesto na marquise da Galeria Metópole. Tudo a conspirar: Estamos retomando nossa cidade. Há um encantamento com esta moça antiga, nossa cidade, que se perdeu em algum lugar - provavelmente para erguerem algum prédio de cinco quartos, com sua varanda gourmet e academia.

E gente. Que é o que importa.

O Copan? Bom, o Copan, um clássico como o filé do Moraes, um patrimônio como o canole da Rua Javari, um Masp, um Parque Trianon, uma estação Júlio Prestes. Havia uma festa - ou balada como dizem os meninos - ou boate como diria o pai - naquele estacionamento entre a Ipiranga e aquela rua que vai virar Rua Araújo. Era uma balada tecno, com gente dançando esquisito (segundo a versão do Grande). Sem contar o muro, todo pintado e bordado de diversidades.

Saindo dali, quem sabe, voltar para as Perdizes pelo Minhocão?

E aí, cheiro de fumaça. Um cheiro forte. E aí, sirenes, viaturas, caras feias. Na esquina da Ipiranga com a Consolação dava pra ver. Havia fogo. Lixo queimando.

Confesso, não sei o que houve de fato. Li hoje pelos jornais que uma manifestação de mil e quinhentas pessoas desandou. Que quebraram agências bancárias e que foi um fundunço para evitar que a manifestação chegasse até a República onde havia show. Eu estava ali, no meio, provavelmente, entre os furdunços. Eu, minha companheira e meus dois filhos. Não vimos, entretanto, este meio.

Vimos sim o colchão pegando fogo, de longe. E carros tentando passar pela barragem inflamada. E sim, um dos carros pegou fogo ao passar pela barrragem. Sim, provavelmente por medo do condutor - medo justificado, diga-se - mas ninguém ateando fogo dentro do carro. E sim, uma cena ruim de ver. Poderia ser mais grave.

Mas o que vimos foi a polícia. E aí, sinto, lamento, desculpem-me. A polícia tinha sede. Ao passsarem por nós, que estávamos distantes da confusão, com crianças, quase nos cercando, havia a disposição para o combate. A tropa. Os carros na contra-mão. Não havia ninguém a orientar. Sim, uma situação de estresse, sem dúvida. Mas para que servem, afinal, as autoridades de segurança?

Ninguém acha que a polícia deve atuar com canhão de flores ou chegar na multidão propondo um psicodrama - o que seria lindo. Sabemos, até os postes, os paralelepípedos - que infelizmente estão em extinção - e as coitadas das lixeiras sempre sacaneadas, que uma situação como esta, de embate, tende a desandar para conflito, briga, tapa, chute, pontapé.

Mas aí que está a cousa toda. De um lado temos o Estado. Com seus agentes. Que supostamente treinados. Armados. Capacitados. Mas não... não são. Sem treino, subiam desordenadamente a Consolação na contramão. Não orientavam. Tacapes na mão, prontos para o confronto - o medo de quem ganha pouco e de quem definitivamente não recebeu orientações para este tipo de conflito. O inimigo do outro lado. E só isso: o inimigo. Eu era um inimigo. Estava ali. Bem ali.

Ouvimos barulhos de bomba, provavelmente na Augusta. Ficamos ali na igreja da Consolação. Vimos as viaturas. A tropa subindo. Não vimos manifestantes. E por isso este relato pode ser entendido como parcial. Mas não é esta a questão que enfrento, a de quem tem razão ou não. É a forma que o estado escolheu para agir.

Pelo jornal li que eram dois mil policiais. Dois mil. Mais que o número de manifestantes. Não sei, mas algo nesta equação não fecha...

Depois de uns vinte minutos, subimos a Consolação para pegarmos o Minhocão, que estava fechado para carros. Vimos o rescaldo do carro queimado, um fusca. Sou da opinião que os fuscas merecem o céu e que quem faz mal a um fusquinha tem pouca chance de perdão, pouquíssima, quase nenhuma. Entristeci-me. Mas já não tinha mais viatura, nem manifestante. Só bombeiro - talvez a única instituição que sobre nessas horas.

Encaramos os três quilômetros do elevado, da Consolação até o "Ponto Chic" do Largo Padre Péricles. No começo, ainda, um pouco apreensivos, porque a iluminação do monstrengo anda tatibitati também. Mas depois viramos super heróis de novo. E mais gente encontramos. E bicicletas. E gente. E cachorros passeando. O horizonte dali, naquele trecho por cima da Pacaembú, é bonito. Estranhamente bonito. Assim como esta cidade maluca.
 
25.01.2014

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