Sobre fuscas e o aniversário da cidade
Ontem
foi aniversário da cidade. E a cidade, estranhamente, estava bonita.
Não pelo sol: inclemente, clamando protetor. Mas pelo conjunto de gentes
andando, caminhando, metropolitando, onibusando, bicicletando.
No Memorial da América Latina, ali na Barra Funda, sambistas da "Camisa
Verde" faziam uma espécie de ensaio para porta bandeira e mestre sala,
além das baianas. Foi legar ouvir o "É noite, agora... chora viola...São
Paulo tem convite para dar... Verde e Branco é um encanto...o show vai
começar....", samba de alguma década final do século passado e que deu
título à escola.
Uma pena o estado de abandono do Memorial. O
Governo do Estado de São Paulo é assim mesmo, deixa fluir, até que um
dia um imbecil venha dizer que é melhor privatizar. A placa da estátua
da "mão" do Niemayer, a que parece a América Latina, o sangue, uma obra
bonita, tá lá... pedindo uma manutenção... clamando atenção... quase
chorando. Mas não tem porque fazer isso, né...
Depois, o
Metropolitano. A estação Barra Funda. É bom passear de metrô. Os meninos
gostam, sinceramente. Eu gosto. Mas alguém precisa explicar para quem
cuida do metropolitano, ou deveria cuidar e planejar, que metrô pode
ser, sim, transporte para os dias de lazer! Sim, com intervalos não tão
demorados, quem sabe, quem sabe, as pessoas não deixam um pouco o mau
humor de lado. Quem sabe?! Mas essa gente que cuida do metropolitano
deve estar mais interessada em outras coisas... quem sabe no preço das
reformas, quem sabe na troca dos guichês de pagamento, quem sabe no
lucro da companhia, quem sabe sei lá.
O centro? Ontem estava estupefactamente bonito e ocupado. Do samba na Praça Roosevelt, do "Jazz nos Fundos"
na sua versão B, ali perto na General Jardim, com uma programação que
incluia diversão para crianças. Do almoço no "Boi na Brasa", esta
instituição do centrão do lado da República, uma relíquia, um oásis, uma
porção de batata portuguesa e um chope numa caneca de metal que faz
salivar só de lembrar.
E o show na Praça da República, com o
som meio capenga é verdade, do Paulinho da Viola. Paulinho da Viola,
fôssemos sérios, seria um país inteiro, seria feriado em qualquer cidade
que ele passasse, seria noite e seriam horas e horas e horas.
A praça Dom José Gaspar, ali atrás da Mário de Andrade, linda. Cheia. O
"Paribar", o "Cachaçaria do Rancho" e um samba prá lá de honesto na
marquise da Galeria Metópole. Tudo a conspirar: Estamos retomando nossa
cidade. Há um encantamento com esta moça antiga, nossa cidade, que se
perdeu em algum lugar - provavelmente para erguerem algum prédio de
cinco quartos, com sua varanda gourmet e academia.
E gente. Que é o que importa.
O Copan? Bom, o Copan, um clássico como o filé do Moraes, um patrimônio
como o canole da Rua Javari, um Masp, um Parque Trianon, uma estação
Júlio Prestes. Havia uma festa - ou balada como dizem os meninos - ou
boate como diria o pai - naquele estacionamento entre a Ipiranga e
aquela rua que vai virar Rua Araújo. Era uma balada tecno, com gente
dançando esquisito (segundo a versão do Grande). Sem contar o muro, todo
pintado e bordado de diversidades.
Saindo dali, quem sabe, voltar para as Perdizes pelo Minhocão?
E aí, cheiro de fumaça. Um cheiro forte. E aí, sirenes, viaturas, caras
feias. Na esquina da Ipiranga com a Consolação dava pra ver. Havia
fogo. Lixo queimando.
Confesso, não sei o que houve de fato.
Li hoje pelos jornais que uma manifestação de mil e quinhentas pessoas
desandou. Que quebraram agências bancárias e que foi um fundunço para
evitar que a manifestação chegasse até a República onde havia show. Eu
estava ali, no meio, provavelmente, entre os furdunços. Eu, minha
companheira e meus dois filhos. Não vimos, entretanto, este meio.
Vimos sim o colchão pegando fogo, de longe. E carros tentando passar
pela barragem inflamada. E sim, um dos carros pegou fogo ao passar pela
barrragem. Sim, provavelmente por medo do condutor - medo justificado,
diga-se - mas ninguém ateando fogo dentro do carro. E sim, uma cena ruim
de ver. Poderia ser mais grave.
Mas o que vimos foi a polícia.
E aí, sinto, lamento, desculpem-me. A polícia tinha sede. Ao passsarem
por nós, que estávamos distantes da confusão, com crianças, quase nos
cercando, havia a disposição para o combate. A tropa. Os carros na
contra-mão. Não havia ninguém a orientar. Sim, uma situação de estresse,
sem dúvida. Mas para que servem, afinal, as autoridades de segurança?
Ninguém acha que a polícia deve atuar com canhão de flores ou chegar na
multidão propondo um psicodrama - o que seria lindo. Sabemos, até os
postes, os paralelepípedos - que infelizmente estão em extinção - e as
coitadas das lixeiras sempre sacaneadas, que uma situação como esta, de
embate, tende a desandar para conflito, briga, tapa, chute, pontapé.
Mas aí que está a cousa toda. De um lado temos o Estado. Com seus
agentes. Que supostamente treinados. Armados. Capacitados. Mas não...
não são. Sem treino, subiam desordenadamente a Consolação na contramão.
Não orientavam. Tacapes na mão, prontos para o confronto - o medo de
quem ganha pouco e de quem definitivamente não recebeu orientações para
este tipo de conflito. O inimigo do outro lado. E só isso: o inimigo. Eu
era um inimigo. Estava ali. Bem ali.
Ouvimos barulhos de
bomba, provavelmente na Augusta. Ficamos ali na igreja da Consolação.
Vimos as viaturas. A tropa subindo. Não vimos manifestantes. E por isso
este relato pode ser entendido como parcial. Mas não é esta a questão
que enfrento, a de quem tem razão ou não. É a forma que o estado
escolheu para agir.
Pelo jornal li que eram dois mil policiais.
Dois mil. Mais que o número de manifestantes. Não sei, mas algo nesta
equação não fecha...
Depois de uns vinte minutos, subimos a
Consolação para pegarmos o Minhocão, que estava fechado para carros.
Vimos o rescaldo do carro queimado, um fusca. Sou da opinião que os
fuscas merecem o céu e que quem faz mal a um fusquinha tem pouca chance
de perdão, pouquíssima, quase nenhuma. Entristeci-me. Mas já não tinha
mais viatura, nem manifestante. Só bombeiro - talvez a única instituição
que sobre nessas horas.
Encaramos os três quilômetros do
elevado, da Consolação até o "Ponto Chic" do Largo Padre Péricles. No
começo, ainda, um pouco apreensivos, porque a iluminação do monstrengo
anda tatibitati também. Mas depois viramos super heróis de novo. E mais
gente encontramos. E bicicletas. E gente. E cachorros passeando. O
horizonte dali, naquele trecho por cima da Pacaembú, é bonito.
Estranhamente bonito. Assim como esta cidade maluca.
25.01.2014
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