segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O sorriso de uma moça

 
Em 2006, nos Bolonistas, fizemos uma copa do mundo inteira antes da copa de fato, copa que foi na Alemanha. Na nossa copa, muito mais bonita, cousas fantásticas aconteceram. Mas descobrimos autores, narradores, jogadores entre amigos de boteco. Foi fantástico.
 
Estamos a tentar repetir o trem neste ano, de copa cá no Brasil. E criamos um blogue, o Copa no Fio do Bigode, para narrar nossos jogos. Os resultados tem sido deliciosos.
 
Escrevi este texto aqui, supostamente para narrar um França e Honduras, no Beira Rio em Porto Alegre. E gostei do resultado....
 
Trago para cá, para a mercearia.
 
Pão quente. 
 
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Eram quinze minutos do primeiro tempo e já tínhamos farta matéria para os botecos. Para conversas daqui até Paris. Muito embora sabíamos todos que o destino da partida seria a maçã de Newton cair logo logo ao invés de ficar levitando como a conjurar demônios e a divertir por meio de metáforas: o gol de Davi contra Golias, logo aos cinco minutos. Mas depois do gol, o encanto e a maravilha: três ataques e três defesas espetaculares, milagrosas, meticulosas, espalhafatosas, sensacionais, redundantes até.


Lembro da única copa que houve de fato, a de 1982. Levara um radinho de pilha para a escola e auscutava, silenciosamente, pelejas durante as aulas. Uma delas, um soberbo Espanha 1 x 1 Honduras. Arzú, o goleiro hondurenho, um deus maia, fechou a cidadela centro americana e vingou a colonização nefasta, defendendo tudo e pensamentos. E só houve empate naquele dia porque alguém marcou uma penalidade ao fim do jogo, um desses imperialistas nojentos vestidos de preto.


Seria novamente Arzú? O fato é que aos vinte minutos ainda da primeira etapa a sucessão de milagres fazia a plebe acreditar piamente que um único gladiador poderia derrotar um império todo. As defesas de Zetti contra a Católica, todas, uma a uma. Rodolfo Rodrigues contra o América, uma obra de arte. Marcos e aquela partida inenarrável contra o Corínthians. E aos vinte e sete, duas penalidades. Duas. Dida, contra Raí. Era fato: o goleiro.


Mas a pressão era tanta e tamanha, armadas, fragatas, navios, submarinos, caças rasantes e seus mísseis. Acreditar que não haveria empate, virada, lógica, crua e nua, era acreditar em besouros que falam ou em vingança divina. Acreditar no impossível.
Mas era assombroso. E até de Rogério, sim, do mitológico arqueiro, contra o Liverpool – Gerard, no canto alto, espaaaaaaaalma o goleiro.


No intervalo, frisson. Até os pedregulhos, se filosofassem, teriam assunto de monte. O burburinho era incessante. Tive, por momentos, a certeza de que algo de sublime estava a acontecer. O homem pisando na Lua. A invenção da cerveja. O ar condicionado. E eu estava lá. Logo no começo do segundo tempo, cruzamento na área, o bola de ouro da Fifa e que tais, cheio de dólares, francos, suiças, flashes, cantigas, matérias de relógios, namoradas e de confusões nos periódicos da metrópole, sobe alto e testa firme. Pelé e.... Banks: queixo caído. E poderia descrever, logo depois, Oscar e Zoff, na mais terrível defesa de todos os mundos. Era incontroverso: assistíamos a maior exibição de um ser humano a defender balisas em todos os tempos, memoriais ou não, de Zamora à Barbosa, de Gilmar à Buffon, de Taffarel, de Valdir Peres, de Cassilas à Nkono. Arzú.


As faces de desolação, de derrota, de submissão dos jogadores adversários. Os rostos maravilhados. O treinador arrancando os cabelos. A elétrica certeza do estádio todo: Estávamos presenciando a história, Pearl Habor, a batalha da Normandia, o Riachuelo, Waterloo, Stalingrado, Bill Gates, Santos Dumont.


Mas um senhor ao meu lado assistia a tudo estranhamente desolado... e me diz, com a tristeza dos tesouros roubados por Cortez e Pizarro, em tom fúnebre: “Não posso mais suportar...”.


A história era assim: O arqueiro só fechava o gol quando estava triste. Muito triste, então, era um Yashin. Desde pequeno, descalço, o guri só conseguia fechar o gol depois de tragédias. Perdeu o pai, assassinado numa briga de gangues, catou até raio num joguinho de quarta série. A mãe, enferma, campeão do ginásio numa partida colossal contra um time repleto de repetentes, gigantes e malvados. O rol de infortúnios, as defesas miraculosas. Mas... era estar feliz e pronto: pinimbas em série. Frangos e uma coleção inteira de pássaros e vexames em finais de campeonato, em jogos no exterior, em eliminatórias. Só estava ali porque o goleiro titular estava suspenso e muitos não o queriam. E o senhor, firme, lágrimas: “tenho medo de saber o que será que está passando por aquela alma neste instante... deve ser amor.”


Suspenso no ar. Faltava me fôlego. Não sabia se podia acreditar naquela história, por demais fantástica, um conto de Cortazar, uma imagem da Amazônia de Pantaleão, Bolivar e Martí tomando um rum numa praia pirata. Mas o fato é que aos quarenta e oito minutos, o estádio em êxtase e o imperialista de amarelo, sempre eles, a lei, a marcar penalidade indiscutível. Cal. Silêncio.


No telão, um rosto de mulher. Sinto a tragédia, quando vejo o senhor ao meu lado, um Gabo, com seus bigodes trêmulos, chorar: “é ela...”.

A multidão e eu, todos os olhos do mundo, no arqueiro imenso. Que sorri ao rosto da mulher, riso farto, contente, contundente, de senhor do mundo, Quincas Berro D'Água.

Correu...... bateu.........”.


Para fora. Para a imensidão.

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