terça-feira, 27 de maio de 2008

Cordão no pescoço

Tic tac tic tac tic....


Desde menino. Os mesmos passos. Os do pai e os do avô. A loja, a pequena loja de miudezas. Cinco e meia, e acordava. Cinco e quarenta, o banho quente. O vapor no banheiro, outras partículas, mas os desenhos eram os de sempre. Os da toalha, azuis. Sempre, com os relógios sincronizados matematicamente, o da parede da sala e o da geladeira, marcando inapeláveis seis, os ponteiros cravados no seis, era o cheiro do café, sempre austero, forte, sem açúcar ou adoçante. E o pão com queijo. E a banana, amassada e com aveia. Os pratos marcados com o tempo e os arranhões dos mesmos garfos.



A mesma falha no segundo degrau da escada. Os mesmos pedidos da mãe, que também foram da avó, de pegar a velha blusa para os casos de frio. Não importava o sol, o bafo, o vento. As mesmas considerações sobre o tempo, sobre a vida, sobre os vizinhos. A mesma pausa para conversar com o dono da padaria. A mesma bicicleta que levava o pão. O copo de leite.


O portão da loja. A mesmíssima fechadura com o eterno defeito na terceira tranca. A velha tramela e o ranger de sempre, no imenso balcão de madeira. O mesmo tilintar da máquina de contar. Os mesmos cuidados com o pó, o mancebo, as vassouras, os nós dos fios de lã. E o rádio, na estação habitual, a música cotidiana que informa sobre a cidade.


A freguesia. A pausa para o café coado. O imenso baú que nunca era vendido, mas estava lá, com o preço do avô. A cantilena da pechincha. O fiado lascado. As moedas. A linda apontadora do jogo do bicho, bisneta da primeira funcionária da lotérica ao lado. A mesma aposta de cinco mil réis no Galo, na dezena.


O almoço comercial no bar ao lado. A conta na fatura. Uma compensando a outra, a panela nova pelo tutu. De feijão, nas segundas feiras. A pequena sesta no quarto no fundo da loja. O hábito da cigarrilha e do vermute. Esperar pelo tempo, que passa. Corriqueiro.


Naquele dia, não. Ao fechar o portão da loja, dezoito badaladas do relógio da matriz, o assalto derradeiro. O coração. E mais uma estatística. Rotineira.


2008. maio.

6 comentários:

Anônimo disse...

Adoro esses contos pingados assim, cheios de frases curta, mas com muitas reticências implícitas. Adorei e vou voltar. Obrigada também pela visita

Auréola Branca disse...

Puxa... De repente me dei conta de agradecer a Deus mais um dia de vida/visitas.

Obrigada por visitar-me.

Abraços...

Crys disse...

E a gente no meio da rua do mundo,
no meio da chuva, a girar, (que mararavilha) a girar,...

Obrigada pela visita, tão alegre, que me contagiou...rsrs

Beijocas.

Vivi disse...

Gostei muito. Suas análises sobre o cotidiano são bem pontuais (rs). Além disso, difícil não se identificar. Ainda bem que eu vivo para poder reclamar do meu cotidiano!

Sofia Maria disse...

Que delícia de conto. Me remeteu aos cheiros, sabores e cores da minha infância. Muito belo!

Vou adicionar o Quodores tb!

Abraço!

ex-amnésico disse...

Olá, como vai?

Retribuir visitas ao blog tem me trazido surpresas agradáveis e esse seu, pelo pouco que o adiantado da hora me permitiu ver, vai ser uma delas.

Uma página de saborosíssimas crônicas/contos e um poema que eu nem precisei compreender pra gostar! Vai me ver sempre por aqui, conte com isso!

Abraço (de um monomaníaco que não espera da vida senão contradição...)