Segundo o Houaiss, Quodore é uma pequena porção de vinho, uma pequena porção de alimento. Também é uma bebida ordinária, um café ralo, algo para o desjejum. Aqui, são fragmentos, ideias, pensamentos tolos, outros tipos de pensamento. Enfim, um cadinho de alimento...
sexta-feira, 27 de novembro de 2009
"Para que rimar, amor e dor?"
Algumas cartas encaminhara. Pelo correio, pelo florista, pela rede de computadores, pela sorte. Outras guardara, como pergaminhos, encíclicas, testamentos. Não duvidava, e não aceitava debates, daquele amor infindo e puro, mas cruel. Pulsante. Seu coração tinha dona. Mais que isto: tinha uma deusa.
Sim, a indiferença dela o destruía aos poucos. Envelhecia, com dignidade é verdade, a cada resposta evasiva, a cada pétala morta, a cada letra não lida.
E um dia exagerou, sem querer, no cálice. O tinto descera tão suave que teve febre, calafrios. Um calor de paixão. As letras mudaram de rumo, tomaram outras paradas. Escreveu loucamente sobre pernas entrelaçadas, coxas molhadas, sexos tocados, maneios, devaneios, línguas, bocas, sumos, sucos, suores. Escreveu num ritmo apressado, sem olhar para trás. Esqueceu da gramática, das rimas, das conjugações precisas, das palavras escolhidas no dicionário. As letras foram escritas pela rua, pelo vinho, pelo falo irriquieto, pelas putas.
Ainda em febre, ia rasgar o papel escrito em letra bamba. Pecados. Mas antes que ele desistisse, súbita, ela adentrou ao quarto, cheirando a casa limpa. Arrancou-lhe das mãos a carta, decidida a colocar um fim, um ponto final, o termo naquela insanidade platônica. Tinha um ar esguio, jovem, sem complacência. Tomou a última carta, feroz. Rasgou a carta ao meio, dizendo em plácida educação: "Não gaste mais este belo verbo. Conjugue para outra que te mereça".
Ele, aturdido, mas ainda com febre, já não pisando mais no chão: "Leia esta ao menos, a última.".
Dois dias depois, numa casa com cheiro de azedo, foram encontrados os corpos. Sem arfarem, despidos, na varanda escancarada. Era noite quente de lua cheia.
09. novembro
terça-feira, 24 de novembro de 2009
Contos de Torcedor
Gosto muito, como já disse noutras vezes, de um série de textos que escrevi no "Bolonistas", o nosso sítio de futebol, que conta causos sobre torcedores e sua paixão pelo futebol.
Aqui vai mais um. Espero que gostem.
O link para o original cá está: http://osbolonistas.zip.net/arch2008-04-01_2008-04-30.html#2008_04-08_19_15_27-2402205-25.
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Zizinha, uma homenagem do pai ao cracaço que até Pelé admirava, era alegre e brincalhona. Não perdia piadas e não entrava em berlinda desnecessária. Um dia me disse que era a mulher mais sortuda do mundo, pois era Botafogo e no tricolor jogaram Sócrates e Raí, coisa que outro time nenhum do mundo ousou sonhar.
É sempre difícil contar o início de uma inimizade. Qual calo foi pisado, quem pisou antes, o pecado original e o azedo. Das agruras deste tipo todos sofremos. Alguns são pessoas normais, tranqüilas, pacatas. Mas quando há a faísca, inevitável a ressaca.
A primeira contenda entre os dois, que me lembre, data de tempos imemoriais. Disputaram, voto a voto, a presidência do Grêmio Estudantil da Escola Estadual do Clássico e do Científico Jornalista Libero Badaró, lá de minha cidade. E um ódio de vísceras nasceu entre os dois. Ela ganhou, mas foi ele que foi eleito o mais popular da escola, na votação do baile no final do ano.
Saldanha era elegante. De uma cortesia arrebatadora. Um coração do tamanho do Palma Travassos, o estádio do querido Comercial, sua paixão maior depois do chope do Pingüim.
Na faculdade, discussões no corredor eram mais usuais do que pasta de dente. Recordo com exatidão de avó a vez que um deles defendeu no pátio o presidente João Goulart. A outra, na seqüência, acabou dinamitando o plano de metas, cada espinha. Ambos foram presos, entretanto, e tiveram que sair do país. O Golpe era torpe e conseguia unir Montecchios e Capuletos no mesmo barco.
E se odiaram por cartas, manuscritos e por conversa alheia. Figadais. Nos panfletos da clandestinidade, ele defendia a estratégia da resistência, até a luta armada. Ela queria ingressar no MDB. Um dos nossos conta com exatidão matemática que se encontraram
Com a Anistia ambos voltaram para nossa cidade. Quem conhece a história sabe que foi uma festa. Os dois eram figuram carimbadas nos encontros dos centros acadêmicos, nas palestras da Universidade, nos saraus, colóquios e nos botecos da cidade. Ele ajudou a fundar o PT. Ela ajudou a construir o Diretório do PMDB. Ingressaram na vida acadêmica e a trágica futrica ganhou ares de pelada: No concurso para livre docência, ambos concorreram na mesma vaga. Ele ficou com a vaga. Ela, porém, virou catedrática dois anos antes.
A rixa entre ambos faz parte do anedotário da Universidade. E virou página de jornal, fofoca de quitanda, matéria prima para rádio novela. E há partidários aqui e ali, de um e de outro. Fiori, o simpático garçom do Taberna, sempre coloca um no lado oposto ao outro, para que se evitem inclusive os olhares de esguelha.
Outro dia, pelo Correio, recebi em casa um convite delicioso, inesperado. E desejado. “Querido Amigo, temos a honra e o prazer de convidá-lo para o lançamento do nosso livro “Come-Fogo, patrimônio cultural da cidade de Ribeirão Preto”, na Choperia Pingüim, às dezenove horas do dia oito de abril. Contamos com sua presença.”. Olhei o relógio. Dá tempo de tomar uns dois antes da festa...
08. abril, 08.
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
Os fiozinhos e a Liga da Justiça
Sessão Animada
"Pai, não é que os pensamentos são como um carrossel?". "Como, filho, como?". "Pai, os pensamentos são como um carrosel, são os fiozinhos que ficam girando na cabeça da gente.".
Era um fim de tarde. Hora do banho. Saída do banho. O Pequeno ainda se deliciava no chuveiro e o Grande era "secado". E a expressão no rosto do Grande era qualquer nota. Olhos imensos, como a curiosidade. Demorei algum tempo para compreender a bonita frase do menino. E, de fato, feito carrossel comecei imediatamente a sonhar.
É muito bom viver essas coisas. Ainda vou escrever sobre este carrossel, depois que este pavão que tomou conta dos meus devaneios paternos se acalmar. Aliás, o pavão pode se transformar um verdadeiro vilão se não administrar estes devaneios.
Numa brincadeira na sala, pai sendo o vilão inventado pelo filho, mas sem saber muito quais eram os seus "poderes", uma correria louca e frenética tomou de assalto todo o apartamento. Era a terrível invasão do monstro com garras feias e grandes contra todos os heróis do mundo. E o pequeno, cantarolando como se fosse uma trilha de fundo, habitual como as trilhas dos desenhos animados: "Enquanto o Sangue vem aí pra aprontaaaaaaar, o Raio ta aí pra derrotaaaaar.". Quando eu percebi que eu era o vilão Sangue e que nossa história já tinha trilha sonora caí numa gargalhada que atrapalhou a brincadeira. Um coro, de profunda braveza: "Paiê!!! Assim não...". Mas minha risada era uma arma letal e os capturei aprisionando-os na fortaleza do malfeitor, minha cama.
Bom, a série animada, além do vilão Sangue e do Raio, herói criado em coletivo de idéias, tem outras personagens incríveis: O Rolha, que tem poder sobre todas as garrafas, é um vilão terrível. Quicóvitch é um leão gigante com espinhos e com um mecanismo nos dentes que o transforma ora em Batman, ora em Superman. O Pipóvitch, uma resposta do Grande à criação felina do Pequeno, primo do Quicóvitch, com poderes sobrenaturais, que as vezes é um fantasma vermelho, outras um Leão sem gravata, sempre veloz e capaz de pular quarteirões. E o Pum, baseado nos poderes do papai, um vilão cheio de gás!!!
Bom... chega de devaneios. O Pavão está definitivamente passeando por aí. Quem sabe com este texto encontramos os "súperes" capazes de dedurar este vilão!!!
09. outubro, 05.
Mediações de Interesses
Há sempre um querer de paz. Mas em certos negócios, a paz não é necessariamente calmaria. E neste aparente paradoxo foram tocando os dias. E as noites. Sem assembléias, cumprimentavam-se mais por gestos do que com palavras. E o gestual incluía pequenas e perversas provocações. Os corpos é que comunicavam interesses, desejos, vontades e pudores. E era nos pudores que eles se concentravam ultimamente. Quem sabe nestas descobertas encontravam maçãs novas e saborosas. Com sorte, indecorosas.
Nesses quereres de paz compreenderam a importância das palavras. Mas sobretudo do silêncio. Era no silêncio que não os incomodava que residia a volúpia de outras traquinagens. Feitas a dois. Juntos. Um e outro. A paz também não é conservadora. Se exige um certo radicalismo: transformador, mutante, pungente.
Ele reparava cada dia mais no sorriso dela. E por isso fazia do humor uma flauta. Gostava do riso, do som do riso, da cor do riso e do gosto do riso. Ela, quando percebeu, usou charme, mas sempre acabava por se entregar em marotos movimentos da boca. Do sorriso ao manifestar desejo, um pulo. Acabavam, quase sempre, em brincadeiras, além dos beijos.
Para ela, era o entusiasmo dele. Sim, como levantadora de volibol ela alçava bolas doces e açucaradas para que viessem discursos inflamados, goles de coisas novas, convencimento: de convencer e de convencido. E quando ele sacava os propósitos dela gostava de apertar o corpo dela. Notadamente a bunda.
Há sempre um querer de paz. E se paz é tranquilidade deve ser alvoroço também. Nascem idéias, flores, mimos, agrados, taças, copos, jogos. Descobertas, desacertos, enredos. No fundo, bem lá no fundo, a paz não é paz não. É fogo sem ser fogueira.
09. outubro, 21.
Armarinhos - Material Elétrico
Depois de muito tempo, textos.
E como um deles é uma saca muito pesada, publico três.
De uma só vez. O boteco andava em reforma.
Ainda tem parede para reformar. Mas tá ficando bão.
E um pouco de leveza faz bem.
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As vezes fica tão escuro que não importam o sol e o céu claro, do lado de fora. A escuridão é um estado de alma. Densa. Uma ausência de luz que se constrói da inquietude, da desesperança, da inapetência, do ceticismo e do mórbido sentimento de comiseração. E, depois, este querer piedade acaba por alimentar ainda mais a escuridão, numa macabra engenharia da desilução.
Não é que não se possa ver o sol. A claridade ainda cega os olhos, queima o corpo. Em excesso pode até intoxicar o organismo. É que o sol não alcança as entranhas, não acalenta, não acolhe. Os passos se tornam miúdos, medrosos, tesos. E já não se pode mais acordar, porque deixamos de sonhar, de dormir.
É a inércia, o estacionar, o estagnar. Por outro lado, como se fosse possível, numa penumbra ainda mais escura, quase fugindo, é vagar, perambular, dormitar.
As vezes fica tão escuro que não se percebe sequer a noite. E assim não se reconhece a Lua, a misteriosa dama que nos encanta. Não há encanto. E sem encantamento, convenhamos, até um copo de água tem gosto de fracasso.
E nesses dias não há deuses, não há milagres, não há fortuna.
E antes da lápide, o interruptor está ali, bem ali. Basta um mísero e único toque. E a percepção de que o começo também é escuro feito o ventre, feito buraco negro, feito os derradeiros segundos anteriores ao primeiro "bum".
09. setembro, 08.
terça-feira, 12 de maio de 2009
Conjugar o Verbo Crispar
Gosto de tecer tua métrica. Não só os versos, mas o bailado todo. Que começa com teus olhares furtivos e termina, invariavelmente, com teus olhos cerrados. Gosto da métrica como se fosse fita, centímetro em centímetro, deslizes, matrizes de devaneios que sempre acabam com a imagem de tua pele arrepiada, ouriçada em sentimento e vontade.
A métrica pode ser o desejo, o lampejo, o pulsar, o querer, o versar, o invadir, penetrar, consumir. Podem ser simples mãos dadas ou complexas engenharias em beiras de estrado. Quem nunca ouviu um sussurro, um gemido, um pedido? E nisso os versos se confundem com cheiros, perfumes de corpo, de botica e de sexo. Cheiros insubstituíveis, como métricas. Como versos.
Escrever assim remete à métrica. Ao verso composto em duas vozes, em formas, curvas, desvios, fluxos e dentes. Unhas. Enfim, nessa métrica livre, a única regra é a regra mais simples e objetiva, a de rimar gostar gotejar solfejar. Escrever assim poderia ser canto, encanto, afago, doce, amargo ou qualquer dessas coisas que transpiram nesses sentimentos sortidos.
E as regras da boa métrica poderiam ser classificadas como ousadias necessárias para um bom poema. E nesse ritmo, toada, melodia, arrebata a sensação de que nunca mais seremos serenos, tranqüilos, exatos. Portanto, de hoje em diante, estabelecemos um único regulamento necessário e talvez indizível: As roupas ficam no cabide ou no chão, porque a respiração aquiesce e aquece, e rimam.
09. maio.
sexta-feira, 24 de abril de 2009
http://osbolonistas.zip.net/arch2008-04-01_2008-04-30.html#2008_04-04_18_05_02-2402205-25
Mais um daquela série de pequenas histórias de futebol.
Gosto destes textos.
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Mistérios da Mente Humana
Bolonistas gratos e os outros...
Ela torce para o Pelotas, a ingrata. A desculpa esfarrapada, e a ingrata não sabe o que é uma bola de futebol, é que o pai, os irmãos, os tios e os primos todos são torcedores daquele time de lá. Aquela coisa. A ingrata não sabe o que é um impedimento, desconhece a regra três, não sabe o que é linha de fundo, mas é Pelotas. Bem feito, a ingrata está na segunda divisão.
Fui eu que a levei, pela primeira vez, para ver Fellini. Ela chorou tanto ao fim de Amarcord que eu nem pude disfarçar o desconforto. “É uma obra de arte”, lacrimejava. A ingrata depois disso foi estudar roteiro, fotografia, história da arte e acabou se formando em cinema, Nova Iorque. E está com a corda toda nessas revistas especializadas.
E nossa viagem para Montevidéu? A ingrata esqueceu que fui eu que a levei ao tango, ao vinho chileno, ao alfajor argentino. E ainda fomos curtir as férias na Praia Mole. Ingrata, esqueceu Cuzco, as Cordilheiras, Arequipa e Lisboa. Se ao menos fosse Farroupilha, vá lá. Pelotas. Pelotas, minha mãe!
A cidade tem três times. Três. O xavante, o querido e heróico Brasil, o nome de nossa paixão. O Farroupilha, e aquele caneco de 35. E aquela outra coisa, amarela. Ela tinha que escolher justo a opção do juízo final? Ingrata. E eu que sempre me perguntava quais as razões dela nunca vestir aquele tubinho preto com laçarotes vermelhos... Era por causa do Brasil. Ingrata. Mil vezes.
A ingratidão crassa. Campeia. Dilacera. Ingrata é o que ela é.
“Cubillas!!! Cubillas!!!!”
Tenho que ir. Ela me chama. Temos que pegar os dois na escola. Mas acho que vou convidá-la, pela última vez, para ver o Xavante e Internacional, lá no Bento de Freitas. É a última vez, juro. De pé junto. Ela fica linda com esse vestido azul...
08. abril, 04.
segunda-feira, 13 de abril de 2009
Gautier
Em desalinho.
Desencanto.
Em um canto.
Qualquer. Me alinho.
Pisadas feias.
Esteticamente inúteis.
Enfim, quem foi que disse
Que a meia devia combinar com o sapato?
09.
terça-feira, 24 de março de 2009
Dois para lá...
É difícil imaginar situação mais estranha do que aquela. Escrevia loucamente mais um parágrafo de textos insanos sobre a crise mundial. A cada minuto e a cada segundo queria escrever mais. Queria que alguém soubesse que o que ele acha da crise, o que ele acha desta rotina sufocante dos que buscam o sucesso, da usura, dos bancos, da governabilidade, do caos.
Escrevia com uma compulsão que fazia os botões do teclado do computador pularem de raiva. E diversos impropérios lhe tomaram de assalto e teve ganas de colocar no texto xingamentos a todos aqueles que fizeram do seu sonho mero desencanto. Escrevia com toques rápidos e as letras se misturavam numa algazarra que mais demonstrava o seu estado de ânimo do que as idéias que tinha naquele momento. Não eram idéias, definitivamente. Eram desafogo, descarrego e aflição.
Emputecia-se, e com palavrão definia com exatidão o sentimento atroz que lhe consumia o fígado, com as justificativas fáceis para matar as velhas canções das praças e os antigos quereres de vermelho. E jorravam letras e mais letras que teciam as mais virulentas críticas para a excomunhão de alguns lúcidos. Era uma febre e as palavras saltavam para a tela do computador com uma velocidade de alívio. Transpirava ofegante e sentia uma espécie de entorpecer. Que ninguém fosse ler, mas desopilava tudo. Como um vômito feroz. Como uma vertigem alucinante.
Já não tinha mais certeza de quantas horas passara ali na frente daquele computador, destilando toda aquela toxina que corroia as vísceras.
Respirou, enfim, aliviado, se levantou e foi ao baile dançar com ela. Tocava um bolero, os passos são mais fáceis para os iniciantes.
09.março.
terça-feira, 17 de março de 2009
Sabotagens da Madrugada
E quando martela, martela.
Este texto é culpa dela. Achei ruim, fraco, teimoso. Mas não me livro dele. Martela...
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Amendoim também tem a letra N...
Repita e escreva sessenta vezes que o pé de moleque é feito de amendoim e que amendoim é escrito com eme de maria e não com ene de navio. Repita e escreva sessenta vezes que o pé de moleque é feito de amendoim e que amendoim é escrito com eme de maria e não com ene de navio. Repita, e escreva sessenta vezes, que o pé de moleque é feito de amendoim e que amendoim se escreve com eme de Maria e não com ene, de navio. Repita, e escreva, sessenta vezes, que o pé de moleque é feito de amendoim e que, amendoim, é escrito com a letra ema de Maria e não com a letra ene, de navio.
Tal qual lição de casa e ditado por ter feito coisa feia, ficou lá se martirizando com a idéia infeliz que lhe veio à cabeça. Percebeu que ainda não dominava - apesar dos tantos anos, dos tantos livros, das tantas broncas e dos tantos tantos - a regra da vírgula. A vírgula ainda era tão misteriosa quanto à donzela, tão desconhecida como o oceano profundo e tão distraídos eram seus pensamentos que se confundiu com os pronomes.
E naquela toada horas se passaram. Talvez dia. Com certeza, noite. O caderno todo rabiscado das coisas do amendoim. Sem casca, salgado, torrado. Eram outras coisas que apareciam pela mente fértil, mas cansada. Obsessão. Não conseguia mais sair daquelas linhas e daquela brincadeira com a frase da lousa dita pela professora em alguma janela distante da memória indecifrável. O tempo estava consumido.
Repita e escreva sessenta vezes que o pé do moleque está com amendoim e que amendoim, mesmo com casca, se escreve com a letra M da Maria, que é nome de bolacha, e não com a letra N, de navio. Repetiu e escreveu, bem mais que sessenta vezes.
Ainda assim, depois de tanto esforço inútil, em amendoim, constatou com uma certeza quase mortal: tem N.
09. fevereiro e março.
terça-feira, 3 de março de 2009
Conclusões
Espero que venham outros.
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Notas de rodapé
Nunca pensara na vida após a morte. Agora, morria. E teria que pensar vivamente no momento seguinte, no que faria, onde iria, quais palácios visitaria. Nunca pensara porque a morte sempre esteve distante e não exercia fascínio algum. Mas, repentinamente, era a morte. E o depois.
Pensou nas diversas possibilidades que se ofereciam. Nas possibilidades cósmicas, nas possibilidades imateriais. Pensou no ocaso. No fim e nos começos. Sentiu vertigem e foi preciso muito esforço para retomar a linha de pensamento, frágil, que o mantinha vivo. Mas a morte estava anunciada. E seu corpo já não respondia a nada.
Sentiu um gosto acre. E finalmente entendeu tudo. Que deveria ter respondido aos gracejos e aos cantos de amor de Beatriz, naquelas cartas perfumadas com perfume de boneca. Que deveria ter largado o escritório muito tempo antes, antes da gastrite, antes das dores nas costas, antes da crise de abstinência. Entendeu que deveria ter cuidado mais das rosas colombianas que recebia de Clarice. E que o sorvete de tangerina sempre fora o seu preferido. Odiou ter esquecido o protetor solar e se orgulhou de cantarolar a “Internacional” nas noites frias de outro inverno.
Não sentia mais cheiros e enfim percebeu que não restava muita coisa. As lembranças do refogado de tomate e cebola, os cheiros dos vinhos e do cálice de vermute que tanto gostava. O cheiro da manga e do perfume de Gabriela. Fechou os olhos e imaginou se depois da morte ainda poderia sentir cheiros e constatou que esta seria a coisa mais terrível que iria acontecer: Não sentiria mais o cheiro do café.
Fechou os olhos e estava tudo escuro. Últimos suspiros. Pode sentir a areia fina nos pés molhados, o toque de Ana em seu braço e desnudou toda a imagem de Raquel, tudo nela agora lhe era seu. Tudo ficou escuro, mudo e fim. Quis ainda pedir mais uma canção. Não deu.
09. março.
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
Brincadeira de Roda
Em alguma dessas reuniões rabisquei esta brincadeira...
Anotei no verso de um extrato que dormiu no bolso do paletó por alguns dias.
Resolvi colocar aqui.
É bobinho.... Mas gostei.
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Ali é o começo.
E pode ser o fim.
Ali é o fim.
E pode ser o começo.
Então começar pelo fim
E finalizar pelo começo.
09.fevereiro.
sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
Desopiladas
Aí chega o carteiro: IPTU, IPVA, OAB, ETC...
Escrevi, em companhia de amigos, este pequeno texto.
Uma contribuição para outro amigo: o fígado.
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Delírios de um refluxo
O azeite é, sem dúvida alguma, uma prova. Prova de que se os Deuses não existem existe o engenho humano. Este engenho é fabuloso, sem dúvida. Outro dia uma sopa sem vida perambulava no fogão. Era um olhar triste, desolador. O fogaréu lá, o borbulhar lá, a ervilha lá. É verdade que os companheiros diletos, o toucinho e o bacon, estavam em férias. Gastrite. Mas o gosto da sopa não conseguia “engrenar”. Faltava vida. Faltava, óbvio, o azeite.
Este sim é um verdadeiro amigo. Conversei por várias horas com este misterioso companheiro. O que andava por habitar minha cozinha era um em lata, vindo de Portugal. O cheiro, o perfume, o aroma do azeite, por si só, já é um convite, uma companhia, um deleite.
Na nossa conversa ele me encorajou. Disse, com palavras suaves, que não tivesse medo. E não tive. O azeite ao cair na sopa já mudou a textura e o paladar da futura comida. Foi impossível não procurar uma pimenta, ainda que moderada, a tal gastrite também conversava comigo, para incrementar o prato. Uma pitada de sal. Um queijo! Sim, na geladeira aquele queijo me chamou, em alto tom: “Vou derreter e ficar puxa-puxa!”. Sorri. Enfim a sopa ganhava cores novas, vida, cheiros e se transformou numa ótima companhia. Reuni a todos na cozinha. Abri um vinho e convenci a gastrite que ela deveria ficar calma. Um pão, que torrei no forno. Umas pitadas de azeite a perfumar o pão.
O azeite é um grande amigo, penso. Noutro dia me ajudou num tomate, cebola, alface. Por causa do meu amigo verde oliva fui colocando coisas novas na saladeira, misturando. Um atum, que parti em diversos filetes. Um queijo gorgonzola, picado. Uma outra rodela de cebola, levada ao forno e totalmente banhada pelo amigo. Enfim, uma ótima companhia.
Ao fim da noite, no dia da sopa, atrevi um Marvin Gaye na vitrola. Meia luz. Ficamos todos ali limpando o resto do prato com nacos de pão. “And when I get that feeling...”.
A gastrite? Sim, esta amiga invejosa resolveu chamar minha atenção horas depois. Com alguma fúria, até. Mas ela cochichou ao meu ouvido, para meu consolo, enquanto procurava o antiácido, colega que mora na prateleira do armário do banheiro: “Você é um turrão, mesmo. Vai culpar o azeite... Será que você não percebe?”. Vomitei na gravata. Era hora de trocar o terno.
2009. janeiro, 29.
quinta-feira, 15 de janeiro de 2009
Mais um acessório para o vestuário
Por vezes pensa nela por todos os instantes do dia. Acordado, dormindo, sonhando, trabalhando, caminhando. E nesses momentos são os pés dela que descansam sobre o seu corpo, apalpando suas pernas, bunda, pés. As coxas dela entrelaçadas com as suas. São os seios dela que estão em suas mãos ou ao toque dos seus lábios, arrepiados. Nestas horas ela está molhada, entregue, deliciosamente nua. E seus dedos a encorajam a mais querer, sua língua procura mais saberes daquele corpo que tanto quer. E estima, pensa, exige.
Mas tem horas que não pensa nela. Nessas horas prefere estar com ela e dentro dela. Por vezes devagar, outras vezes rápida e precisamente. Nessas horas prefere falar bobagens explícitas, dessas que somente chamamos quem nós queremos de fato. Fala das nádegas, dos peitos e do sexo. Da boca que lhe beija, chupa, molha. Das mãos que lhe exploram, tato, desenham. Dos cheiros que se misturam e dos gostos e sabores, mais intensos, salgados, suores, densos.
Mas há horas em que lhe é impossível não querer ser dela. E nessas horas ele se deixa para ela, para os toques dela, para a boca que tanto gosta. E ela lhe toma, toca, invade, mexe, remexe, bole. E quanto mais ele é dela mais ele se lembra das outras horas. E retoma o passo com os gemidos dela, como se aquele arfar fosse sempre o seu gozo, orgasmo, súplica de seu corpo.
E tem as outras horas também. E nessas horas lê, pensa, escreve, fala, vai ao banheiro, respira, corre, anda... E tenho certeza que será inevitável que ele insistentemente olhe para o relógio para saber que horas são.
2009. janeiro, 15.
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
Crudelíssimas Dúvidas
Experiências com o segundo filho... era janeiro. E fazia calor.
Um ótimo 2009 para todos nós!
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Confissões da Segunda Paternidade...
De biscoitos e pernilongos
Há determinadas coisas neste mundo que, definitivamente, não são deste mundo. Mas, sim, de outro qualquer. Que não este, valha-me!
Escrevo estas frases de efeito - será que terão algum? – para falar de um diabrete que insiste, séculos após séculos, maternidade após maternidade, anos a fio e a pavio, em incomodar pais, mães e vizinhos. O impressionante é que não há literatura sobre o assunto, deixando todos imersos na escuridão. De qual diabrete estou escrevendo? As assaduras do bumbum.
Quem se interessar pelo tema, pegue lá o pai dos burros e passe os olhos pelos múltiplos significados da palavra assar, que origina o termo assadura. Todos os sentidos explicam, mas não na totalidade, o que deve sentir o guri ou guria, recém nascidos. Assar é o ato de tostar, crestar... Assar é consumir em chamas, queimar. Assar, abrasa, arde, irrita. Nesta toada fica fácil entender porque os vizinhos têm sempre um pacote de polvilho pronto e separado para entregar para os pais de pequenos infantes. Polvilho, meus caros, polvilho, que não serve só para biscoito. O melhor dos usos para o polvilho é mesmo o de embranquecer o bumbum e a água do banho e funciona como um amuleto, um talismã, uma reza. Pais e Mães de todo o mundo, não se ofendam, nunca, com seus vizinhos se estes seres piedosos aparecerem no meio da noite com um pacote de farinha na mão, suplicando: “Olha, foi minha vó que ensinou... esse chorinho é assadura e para assadura, só polvilho!”
Eu fico cá escrevendo estas palavras enquanto a mãe se engalfinha com o pequeno, lá no quarto. A cena é muito emocionante para nós, os pais, estas figuras tão pouco exploradas nos livros do bêabá infantil, parecendo até que os homens não têm sentimentos. Vendo a cena eu os tinha, o de desolação, principalmente, aliado a profundas e densas sensações de inutilidade e inevitabilidade. E os dois lá se engalfinham, porque parece uma luta renhida, daquelas de vale tudo. Pomadas, super gel para irritações cutâneas, óleo, o bom amigo polvilho e o pequeno gritando. Estica as perninhas, os braços. Chora e lamúria. E quando tudo parece se acalmar, pronto, lá vem outra rodada daquele cocozinho amarelo de recém nascido, que só de olhar já causa assadura.
Se um dia alguém me explicar a razão das assaduras estará desfeito um dos maiores mistérios do mundo. Não as razões óbvias, derivadas de explicações médicas, de irritações cutâneas, de umidade, de fricção. A razão que procuramos é aquela que explica a assadura, que vai ao âmago do problema, que faz o homem gritar “eureca”. Há coisas que não são deste mundo, definitivamente.
Assim como o pernilongo eu não consigo entender o porquê das assaduras, principalmente no bumbum daqueles que só sabem chorar para se proteger.
Mas há o polvilho, esta benção. De agora em diante, prometo: Toda vez que eu for ao supermercado, ao passar por um pacote de biscoito de polvilho, ao invés de só procurar aqueles pacotes com os biscoitos mais tostadinhos, agradecerei aos anjos e aos vizinhos. Evoé, polvilho!!!
O pequeno dorme, mansamente. As mães enfrentam quaisquer diabretes, quaisquer.
2006.