terça-feira, 15 de abril de 2008

Entre sonhos, muitos e assim só



Ainda não entendia bem. Mas o fato é que elefantes atravessavam a sala carregando carambolas enquanto uma perua Rural laranja e branca roncava no quintal. E o quintal era de uma casa, por vezes. Em outras, era a varanda. Do meu apartamento. Só que maior.


Ao fundo algo como uma música distante. E inacreditável, naquele circo todo, a trilha parecia ser Piazola. Ouço vozes desconexas, informando que havia chuva e possibilidade de frio. “Seis horas e quarenta e dois minutos”.


Entendi tudo. Era o despertador. Os elefantes, as carambolas e a Rural eram parte de algum sonho invariavelmente desconexo. Ainda poderia ficar mais um pouco na cama. Aguardar o próximo despertar do rádio relógio. Mas a chuva e o barulho dos pingos na janela tiveram efeito no organismo. Não dava mais para segurar. Era xixi.


Levantei. Tocava um chorinho, de Pixinguinha. Raras vezes um despertar poderia ser tão feliz: Piazola e Pixinguinha. Talvez estas felicidades me renovassem os humores. Acordar cedo não é das tarefas mais gratas. Enfim, me lembrei dos compromissos do dia. O jornal. O mamão. O café, amargo. Preciso comprar mais pó. Ou o granulado.


No banho refiz os planos do dia. Quem sabe a sorte do tango e do choro me levassem a ter um dia mais ameno, alguma resposta positiva daquela chance boa de novo emprego. Ou novo rumo. Dei risada, dos elefantes e das carambolas. Quem entende o mundo do lado de lá? Do cérebro.


A gravata combinando. O maldito do cinto desgastado. Preciso comprar outro. E lembrar da graxa, no sapato. A chuva insistia. Tracei os planos para os melhores caminhos para fugir do inevitável trânsito. Outra olhadela no jornal, os quadrinhos. O Calvin. Outro sorriso. Uma boa manhã. Faltou só o pãozinho quente, com manteiga derretendo. Amanhã acordo mais cedo e vou à padaria. Planos.


O guarda chuva. Teria que andar pelo centro da cidade. Melhor levar o guarda chuva grande. Conjecturas. As chaves. A chave do carro. Mais um dia. Ao esperar o elevador, um assovio. “Chega de Saudade”. O dia até que começara bem.


O portão da garagem se abre, lentamente. O primeiro ronco do motor do carro. O rádio. Lembrei-me da Rural. Novos sorrisos de planos futuros. Com coisas passadas.


Tudo parecia tranqüilo, para um dia de chuva. As ruas desertas. De carros. E de gente. Sem fila nos pontos de ônibus. Um dia tranqüilo. “I`ve got you under my skin”. Sinatra, inconfundível. A certeza que o dia seria perfeito.


Ao entrar na avenida percebi finalmente que estava sozinho. O telefone celular deixara em casa. A chuva torrencial impediria qualquer ser vivente de sair incólume do carro. Olhei para os lados e percebi o inevitável. Ficaria naquela avenida para sempre. Para todo o sempre. O semáforo piscando em amarelo denunciava tudo. Trezentos e doze quilômetros de congestionamento na cidade, informações da Companhia de Tráfego. E o mostrador do combustível alertava para a reserva. As carambolas seriam doces?

2008.abril.

3 comentários:

Vanessa disse...

As carambolas costumam ser doces. Algumas vezes aguadas, noutras azedas. Mas acima de tudo, são estrelas, sempre.

Anônimo disse...

...
Deve ter sido um longo dia.
...
gostei do comentário da VAnessa...
Sim. Acima de tudo, são sempre estrelas.

Juliano Basile disse...

Amaral, em BRasília vc fica pra sempre num retão rumo a algum lugar e nunca num semáforo.