segunda-feira, 24 de março de 2008

Negativos em tempos digitais




Eu não desistia



É público e notório. Quando se mora em uma cidade como São Paulo a tendência é não reparar. O vizinho é um mero distante, um rosto muitas vezes sem nome. O caótico sistema de transporte, o caótico trânsito. Carros. Carros. Metalização das relações humanas.


Todo santo dia é um acordar enfumaçado pela poluição densa, o "fog" paulista. Pela manhã cores enigmáticas no céu. O ar tóxico gera cores surpreendentes, um mosaico de vermelhos, azuis, cinzas, brancos, arroxeados. O céu paulistano quase nunca repete de cor. Digo isto por que existe uma mania triste de dizer acerca do cinza, uma mania. Percepções na metrópole são raridades. Ninguém diferencia paisagens, seres e coisas.


Uma cidade como esta tem seus meandros pouco explorados ou conhecidos. Flávia tinha os seus 50 anos e era fotógrafa por opção e dona de bar por profissão. Naquele dia houve um flagrante roxo no céu. Acordara cedo depois da bagunça da madrugada, fora à Praça Pôr do Sol com sua máquina. Fotos e fotos construíram uma outra cidade e a poluição, paradoxalmente, atração turística.

Quantas partículas de enxofre, monóxido de carbono são responsáveis por essas cores maravilhosas??? Tossiu, quase não ligou. O arroxeado se transformou em grande relíquia. Pouquíssimos diziam que era o raiar de um novo dia na capital financeira. “Uma cidade do interior, que lindo!!!” ou “ É o céu de Brasília?!” e ainda “ Usaste papel vermelho para tapar a lente nesta foto, qual ASA usaste?”


Flávia acordara cedo e caminhara até a janela de sua casa. Um cinza irritante e feio. Tirou fotos e fotos. A paisagem urbana desfez o encanto, entristeceu, emudeceu. Todo santo dia é um acordar enfumaçado. Sentiu um cheiro de enxofre e teve vontade de voltar a dormir. Sorriu. E da relíquia ao cinzento fez-se o contraste, desnudou-se a cidade. Procurou outras radiações, outras luzes, oposições. Começou a chover e lá de longe uma outra cor escura tomava corpo, pedindo para ser fotografada, observada, percebida. Diferenciada. Um suplício de uma cidade, uma busca inútil.

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