quinta-feira, 6 de março de 2008

Outra das outras

Originalmente:

http://osbolonistas.zip.net/arch2007-03-01_2007-03-31.html#2007_03-23_13_43_50-2402205-25


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Bolonistas que esperam pelos mil goles



Não sei se na vida real jogaram juntos. Mas eram amigos, desde sempre. Mané, Vavá e Didi. Pequenos, ainda descalços, se conheceram na escola. Manoel, Valdomiro e Dionísio, de nascença. Mané, Vavá e Didi no coração. Os apelidos lembravam ataque de seleção. Eles gostavam desta curiosa situação.



Mané sempre foi o mais extrovertido, o mais apaixonado, o mais namorador e o mais enrolado. Sempre capaz de extremos, namorou atrizes famosas, jogou futebol no Bangu, ganhara no bicho com a mesma freqüência espantosa que tinha que pedir empréstimos para agiotas. Adorava canções de amor, de amores rasgados, impossíveis e os consumados.


Vavá era destemido, corajoso, um pouco rude, mas aquela rudeza que os amigos perdoam. Uma sinceridade atroz, olhos profundos. Os que o desconheciam o achavam triste. Os que o amaram sabiam de sua paixão pela vida, pelo vinho, pelo calçadão, pela areia. As mulheres foram poucas, mas intensas. Dos três era o único que gostava de verdade de bossa nova.


Didi era sábio e sabia como poucos as melhores saídas para as melhores discussões. Dos três era uma espécie de líder, de cérebro. Galanteador, era fiel, porém. Não era quieto, mas não desperdiçava palavras. Genioso, adorava pão com manteiga e odiava margarina. Os assovios eram comuns e tinham samba, boleros e coisas que tocam nas rádios.


Nunca me esqueci de uma noite, no Bar do Luís, chope e porção de joelho de porco, vozes alteradas: “Essa música é do Antônio Marcos”. Era um brado de fúria ébria. “Você está louco!!! É do Rei. Rei. Roberto Carlos.” A resposta também em alto volume e em tom de discussão. Então, Didi, certeiro: “A música é do Antônio Marcos. Mas a versão que faz chorar... é do rei.”. Ponto final na discussão. Até hoje eles cantam, depois do oitavo copo, a bela “E não vou mais deixar você tão só”, e é possível e provável que os três tenham lágrimas.


Tinham vivido muito a vida. Tinham casado, um descasou, outro viuvou, tinham tido filhos e até netos, no caso de Mané. Tinham até uma paixão em comum, nunca revelada, mas evidentemente reconhecida, pela mesma mulher. Todos eram torcedores. Torcedores no bom sentido. Torciam desde os tempos do futebol de botão, da bolinha de gude e das pipas. Mané, era Fogão, desvairado. Vavá, Vasco, contido. Didi, tricolor, entusiasmado. Mas na cumplicidade que os acariciava escolheram secar o Flamengo. Coisas de torcedor. Coisas de amigos Do peito.


Naquele domingo, o mesmo bar de sempre, um bolinho de bacalhau ainda esperava. Tinha acontecido. Zico, o genial, acabara de dar mais um título ao Flamengo. Uma longa fila esperava o Botafogo, Dinamite não era suficiente para aplacar a dor e a Máquina já era uma lembrança distante. Mas a notícia que os silenciara, pela primeira vez em anos, era aquela que teriam adiado, teriam escolhido ir primeiro, nunca esperaram: Ela se foi. A notícia chegara no intervalo do jogo. Difícil crer. Difícil entender. O silêncio era perturbador. Entre os garçons havia um respeito absoluto. Os chopes com colarinho chegavam sem que fossem pedidos. Uma dor palpável, visível, dilacerante.


Entre olhares perdidos e vagos, o diálogo estranho que teriam evitado pelo resto das vidas. “É. Eu sempre soube.” “Eu também.” “Todos sabiam pelo jeito, até os garçons!”. “A gente dava tanta bandeira assim????”. “Porque nunca falamos isso antes?”. “Porra... você é casado, ele é viúvo e eu...”. “Será que minha mulher também sabe???”. “Mas era algo tão distante”. “Tão distante, tão impossível, tão improvável.”.


Jura o garçom que a última parte do colóquio foi mais ou menos assim: “Sei lá... E podia ser estranho, eu não ia querer saber se um de vocês se enamorou, comeu, trepou, a beijou.”. “Nem eu.” Um longo e pausado silêncio, uma resposta, quase uma desculpa, uma suplica: “Ela torcia pelo América, sabiam?”. Ninguém sabia.


2007. março. 23.

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