quarta-feira, 19 de março de 2008

Cadarços em falso

Publicado antes nos Bolonistas...

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Bolonistas dos primeiros dias....



Ferenc de Almeida. Nunca entendera bem a razão do nome. Mas seu Vicente o nomeou assim em homenagem ao Puskas. O maravilhoso magiar do Real Madrid e da seleção húngara de 1954. Dizem até que o major Ferenc Puskas trocara uns sopapos com a delegação brasileira na Batalha de Berna, jogo em que os magiares colocaram nosso time na roda.


Desde sempre Ferenc foi bom aluno. Era um dos melhores da classe, do colégio e da cidade. Ganhara duas das famosas Olimpíadas de Matemática. Estudou na Federal e se especializou em São Paulo, na USP. Era notório especialista em astronomia e química quântica. Comum ser chamado de “A Sapiência” pelas colunas sociais dos periódicos locais. Fez fortuna. Professor catedrático. Casado, pai de três filhos e uma filha, linda. Foi figura carimbada nos comícios pelas Diretas. Figura proeminente da política local, sem nunca ter aceitado cargos de secretário de estado ou qualquer candidatura. Uma sumidade, enfim. Tal qual o homônimo, genial.


Mas padecia de uma tristeza incomum. Não chegava a ser depressivo crônico, ansioso patológico ou rancoroso. Era uma figura triste. Poucos sorrisos na face. Gostava de música, se encantava com Luis Gonzaga. Glutão, comia de tudo. Tinha especial adoração por filé com brócolis com alho, fritos no azeite preferencialmente.


A tristeza não incomodava os muitos amigos. Embora muitos se preocupassem com a cara de infortúnio de uma das mais lúcidas figuras da República. Alguns justificavam tal enfermidade exatamente pelo fato do professor saber muito e reconhecer a impossibilidade de transformar as coisas impossíveis. Uns diziam que a culpa era do ateísmo. Ninguém tinha razão, entretanto.


Nutria especial deleite pelo futebol. Nascera numa casa simples e desde pequeno aprendera a cantarolar o hino do Ceará, o “vovô” do futebol cearense. Todos na família torciam freneticamente pelo Ceará. Os loucos eram capazes de recitar os times campeões de 22 e 25 como se os jogos tivessem acontecido na noite anterior. O pai Vicente tinha um irmão Valter que nunca mais fora encontrado nas festas de família e nos álbuns de retrato, pela razão odiosa do irmão problema ter se tornado Fortaleza, o tricolor de aço. Pareciam lendas, mas diziam coisas abomináveis do Tio Valter: que este se perdera pelo mundo, que era amasiado com mulher casada na Guanabara e que fora preso na ditadura militar por ser comunista. Doutor Ferenc de Almeida foi secretário geral do PCB na clandestinidade e vai ver era esta a razão, todos desconfiavam, que este demonstrasse afeto e admiração pela história do abominável Tio Valter.


O futebol esteve sempre presente nas reuniões de família. Ferenc, entretanto, nunca fora torcedor apaixonado pelo Ceará. Era, evidentemente, torcedor do Vozão. Ia aos jogos, acompanhava as escalações e tinha ido até a Argentina acompanhar um amistoso. Mas não apresentava os sintomas de delírio da família. Tio Vantuir dizia que o Doutorzinho era tão inteligente que estava acima dessas coisas terrenas.


Mas embora não doente pelo Ceará, Ferenc conhecia tudo de futebol. Sua mente era capaz de assombrosas lembranças dos melhores times do mundo, do Real Madrid, do São Paulo e até do Ceará. Era dos poucos na família que tinha um jogo de botão do Fortaleza e outro do Ferroviário, nomes de times que nunca eram mencionados nos encontros da família Almeida, por ser pecado justo para excomungar qualquer ser terreno.


Mas a tristeza atávica ao caráter do Doutor o fazia sofrer. O pior é que não sabia a razão daquele estado permanente. E numa bela tarde de outono resolveu se encaminhar, finalmente, depois de anos e anos, depois de tanto adiar, para uma terapia, dessas com divã. Temia reconhecer seus fantasmas. Temia. Mas o espanto é que a resposta da terapeuta, passados os primeiros cinqüenta minutos de sessão, era de uma obviedade solar: “Doutor Almeida, me desculpe. Seu problema é evidente. Você tem medo do Tio Valter. Você é Fortaleza, cada palmo, cada pedaço e cada cadarço”.


Ele nunca tinha chorado daquela forma. Chorou, tal qual menino que perde a bola no arame. Nos últimos dez minutos de sessão foi capaz de relembrar o esquadra do Tricolor de Aço de 59 e que seu grande ídolo sempre fora Bececê, o artilheiro de Limoeiro do Norte. Sorriu. Teve saudades do tio Valter. Há sempre um primeiro dia para tudo.


2007.março.28.

Um comentário:

Vanessa disse...

Adoro esse texto, tanto quanto brócolis com alho. E hoje o Fortaleza joga... Beijo.