terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O último e o primeiro cálice


Este texto foi escrito pouco depois de uma reunião com cliente, no escritório...



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Durante alguns breves minutos há sempre a impressão que vivemos um sonho, ou um pesadelo. Nas coisas boas, muito boas, tão boas que não podem ser verdades. Nas coisas ruins, tão ruins que não podem ser reais. Mas os breves minutos passam, e não é sonho nem pesadelo. É real e é verdade. Nas coisas boas e nas coisas ruins.

Nesses breves minutos tentamos absorver o fato, analisar, compreender. Ainda não existe o tempo de se deliciar, ou de sofrer. Ainda não há a satisfação, ou a dor. São breves minutos ou instantes e segundos. O tempo ali não passa. Passará rápido na coisa boa. E não passará na coisa ruim.

Um pouco disso já sabemos todos. O resto não. É preciso passar aqueles breves minutos. Descer para o chão e cair e levantar. Na coisa boa e na coisa ruim. O desejo é que fosse sonho ou pesadelo, pois as coisas ficariam eternas, imediatamente guardadas no arquivo das lembranças, memórias. Mas não é assim. E tem o gozo e a lágrima. A coisa boa dificilmente não finda, termina. A ruim, também. Termina, embora não pareça fim.

Não sei se escrevo assim para esquecer. Ou para lembrar. Para saudar ou para anular. Sentir, sentimento. Nesses breves minutos temos que nos preparar para o máximo. De alegria e de tristeza. O máximo pode não vir, mas caso apareça teremos que suportar. Ou enfrentar. Aproveitar.

Não me recordo se eram esses breves minutos. A única coisa que me recordo é do olhar de Catarina. Distante. Não haveria mais noite depois daquele instante. Não haveria mais nada. Nada, o completo nada. A ausência de tudo o que fomos. Acabou. Catarina morreu. Ali olhava para um cadáver. Insepulto. Com ela minhas tristezas mais profundas. Minhas alegrias mais desvairadas.

Nunca foi tão vazio aquele olhar. Vago. Na primeira vez que a vi foi ótimo, delicioso. Ela era a moça mais linda que meus olhos colocaram atenção. O vestido ainda é azul na memória, mas empalideceu o resto. O sorriso, o rosto, o corpo. Só o azul do vestido. Engraçado como a hora da despedida pode ser a mais dolorosa. Ou a mais assombrosa indiferença. Mas do que adianta esta dúvida agora? Aquele olhar e mais nada.

Catarina era a mulher dos sonhos de cada um. Perfeita em corpo, voz e maneiras. Ria, e era alegre. Tinha malícia no olhar, nos traços, no balançar. A voz, rouca. Era porto. Não me recordo mais quando mudou. Qual foi o olhar, a palavra, o dia. Mas há um dia exato? Não me recordo a exatidão dos fatos. Não há lágrimas, porém. Secaram.

Pergunto se é ódio. Um dia talvez. Hoje, diante daquele olhar, era o nada. E mesmo assim tinha a impressão de que era um pesadelo. Que ela me beijaria e sairíamos dali para nossa casa. O normal e o natural seria voltar para casa, ainda que sem olhar, sem falar, sem se tocar. O normal era o nada. E nada mais.

Não ouvi o que ela disse sobre a casa de praia. Assenti com a cabeça. Quantos planos não eram enterrados ali, naquela mesa velha e desgastada de uma dessas salas de tribunais? Pergunto se ainda há amor. Ou pior, se um dia foi. Impossível não pensar que foi posse, e só. Um tinha o outro. Como uma casa de praia. Ela, não sei se me deu um último olhar. Mas se deu não foi ali, naquela audiência. Eu me lembro da última vez que a quis. Era noite, praia. Ela era linda. A melhor coisa que tive.

Naqueles breves minutos será que podemos evitar? Será que existe como fugir ou escapar? Não, não quero difundir os males do destino, da sorte ou do azar. Naqueles breves minutos o fato já aconteceu, não há mais como evitar. Os minutos, só a primeira etapa, o primeiro toque, a estréia. Se tivéssemos como evitar seria antes daqueles minutos. Eu, sinceramente, não sei se meus olhos desviariam daquele vestido azul. Quando percebi estavam lá. Os olhos, o vestido. Os minutos.

Abro a última garrafa daquele vinho. Nosso último contato. Acho que foi ela que comprou, não me lembro. Mas era a nossa safra. O copo. O fim. Acabou. Não era sonho, nem pesadelo. Mas agora eram só lembranças. E mais nada, absolutamente nada.



2006. julho.

4 comentários:

Vivi disse...

Não há muito o que comentar. Só algo, um lindo texto. Muito sensível.

Anônimo disse...

È palpável a sensação do fim.

Quase pude sentir o gosto do vinho.

Cálice que já bebi.

Parábens, por ser capaz de nos levar do riso á calada emoção.

Anônimo disse...

Dói. Ao mesmo tempo que não.
BELÉ.

Flah Queiroz disse...

Li seu texto e me peguei pensando que os finais são assim mesmo... Se foi bom, dói porque findou. Se foi ruim, dói porque vivemos.

Amor tem essa coisa de dor constante que só o ápice - ou o outro - faz abrandar. Nunca o bastante para que cesse.