segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Outras confissões


O poder mágico dos puns


Os primeiros enigmas a serem descobertos por pais e mães são as razões que fazem o choro. O choro é a forma mais antiga e mais eficaz de comunicação entre seres humanos. Entretanto, é indecifrável para os padrões normais da língua culta.



Mas a língua culta não explica tantas coisas e nós sabemos disso. Um exemplo é como traduzir toda a nossa indignação com aquele motorista que fez sinal que ia entrar à esquerda e entra à direita, sem a menor cerimônia. A língua culta é incapaz de expressar o que sentimos. Já imaginou: “Senhor, deixe de peraltices senão transformará seus atos em biltres atitudes que somente um onagro seria capaz!”. O interlocutor, o motorista, não iria entender patavinas e o seu ódio continuaria a azedar o seu sangue.

A primeira demonstração de vida é dada por um sonoro choro, um choro que abre pulmões, que ganha todo o ambiente do parto. Um sinal de vitalidade, esperado e desejado. Com este choro podemos checar se tudo vai bem. E como ia bem... O menino rompeu o silêncio da sala com uma bela nota musical. O impressionante é, ainda no palco inicial, no primeiro tablado, o choro cessar assim que a criança sente o colo quente da mãe e do pai. A linguagem do choro dá seus primeiros sinais e já denota todo o seu poder. E quem tem poder, sabemos os adultos, manda!

Mas o choro é o reclame por comida, por calor, por afeto. É o desintoxicar quando algo incomoda. É o sinônimo da dor. O estranho, o novo e o impreciso. E como a linguagem é indecifrável para os códigos costumeiros, o método para o entendimento é o do experimento. Experiências vão se transformando na chave da nossa vida no puerpério. E os pais, advogados, bancários, economistas, psicólogos, médicos, músicos, todos enfim, se transformam em cientistas da puericultura. A ciência mais inexata de todas.

O que nos faz pensar que ser trocado, deitado, com milhares de mãos passando por cima do corpo, com as pernas esticadas para cima, tracionadas por braços alheios, seja a mais confortável das posições? A cena é digna de um pastelão, se não fosse uma “experimentação” em busca da perfeição: Uma mão passando algodão quente em nossas nádegas, esfregando e puindo. Um estica e puxa daqui, outro ali. Levanta a perninha, abaixa a perninha. Vira de lado, põe a roupa pela cabeça, tira a roupa, põe a fralda e cola a fita adesiva, invariavelmente em nossas pernas. Eu choraria, ou melhor, eu abandonaria a língua culta e entraria no mundo maravilhoso das reações intempestivas!

Na psicologia de boteco temos aquele chavão: para refletirmos e analisarmos determinada situação devemos nos colocar no lugar do outro. Verificando o que o outro sentiria, ponderando se a decisão a ser tomada seria agradável, punitiva, boa, sem efeito ou com virtudes, estaríamos aptos para decidir e compreender as repercussões daquele ato ou fato.

Perfeito, o ato de desembrulhar os pequenos nunca é um ato refletido com a psicologia dos botecos. E dá-lhe choro. Fome?
Os botecos estão sempre certos. Parem e se imaginem estirados em um trocador, com mãos, que são do tamanho de seu tronco, te levantando para “colocar” um macacão. Você teria náuseas, não teria? E o choro é histérico. Mas o que será este choro?

As crianças nascem e são submetidas a este ritual. Não deve ser a sensação mais gostosa do mundo, convenhamos. Chiado, choro, pranto, berro, urro.
No meio da noite ouvimos um grito. Quase que caio da cama. Levanto apressado e escuto, atemorizado, gritos de pavor soluçantes cumulados com grunhidos da alma e um pouco de respiração ofegante. Entro de supetão no quarto, esbaforido, trêmulo. Lá no berço, um rostinho meigo me recebe, olhinhos fechados, bracinhos erguidos e dormindo docemente, o mais pesado dos sonhos. Teria ficado louco? Existiriam bruxas que conspiram contra a paternidade? Um respirar profundo silencia o quarto. Que espanto, o que seria aquele choro? Pesadelo? Terrores noturnos? Lembranças de vozes da barriga da mãe daquele maldito filme que assistimos no cinema? Eu disse que aquele filme era um lixo!

Ou gases? Ouço um “pum” e me tranqüilizo. Outro. E outro. A flatulência é outra linguagem do bebê. Se não flatula, tem dores. Se flatula, comeu bem. Se tiver dores, chora. Se comeu bem, os músculos auxiliares do flatular o fazem chorar, e chora. Se dormir muito, chora. Se não dorme, chora. Se tiver frio, chora. Se tiver calor, chora. Se tiver gente demais na sala, chora. Se chorar muito, engasga, e chora depois. O rosto todo vermelho, uma bola de fogo: é o choro engasgado, pronto para prantear. E aos prantos ficamos, os cientistas, sem saber se algum dia isto vai parar.

Enquanto isso, numa galáxia muito distante, a vida continua. A chuva assola a cidade, inunda. Os povos guerreando e a intolerância golpeando. Os estadunidenses continuam o “americancentrismo”. A política continua esculhambando. A bolsa sobe. Bolsas são roubadas. Ninguém chora muito por isso, o que é uma pena. Há coisas que a língua culta explica, mas o choro ainda é a forma mais distante de comunicação que conhecemos.

Afinal, estamos todos aqui, não estamos?Xi.... esqueci de passar a pomada no bumbum. E pior, esqueci de secar as dobrinhas. Vai dar assadura? Bom, vai dar é choro, na certa.

2004.

3 comentários:

Anônimo disse...

estou super cientista neste momento
bjs

Anônimo disse...

Praticamente um pedagogo. Adorei a parte do: "Ouço um “pum” e me tranqüilizo. Eu nunca tinha pensado nisso! rs
Muito bom!

Anônimo disse...

Lembrou-me certa página do meu diário (aliás uma das últimas que, porlongos anos, consegui escrever com calma depois do evento maternidade...)...

...lá está todo este universo ancestral, milenar...séculos e séculos de bebes chorando...puns então nem se fala...creio que existem desde o Big-Bang...

E no entanto lá está o pai...a mãe...diante de um fênomeno que ninguém teve coragem de nos explicar antes: É tudo absurdamente novo e assustador...Choros, dobrinhas, puns...

A frase "padecer em um paraíso" parece piada...

Lá se vão quase 12 anos e ainda sei bem do que vc fala neste texto, Fernando.
Penso que nunca somos os mesmos depois disto. Rs.

BJ.

Lilica.