sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

A Velha Cantilena e seu Remédio Milagroso


Estou tão cansado. Meus olhos estão cerrados e é impossível não pensar em não ter mais nada para pensar. Mas tenho que pensar e fazer algo para me tirar desta situação incômoda. O que mais incomoda é saber que há algo a fazer e não poder fazê-lo, por falta de vontade ou por inapetência. Ou cansaço. Simplesmente cansaço. Meus olhos estão cerrados. Cefaléia. Será falta de sono? Estou tão cansado.


O telefone toca. Mais um problema para ser resolvido. Eles poderiam ter características auto-resolutivas, os problemas. Se bem que, muitas vezes, eles se resolvem pelo tempo, pelo cansaço, pela inércia. Era engano o telefone. Engano, ledo engano. Era ele, o problema em pessoa. Não, era engano mesmo, alguém teclou o número errado, procurava outrem. Sufoco. Transpiro. Meus olhos pesam, minha boca seca, meu cérebro continua a martelar.


Quem iria querer me salvar? Só eu mesmo me interesso pelos meus problemas. Que são de todos. Acho que sou louco. Não, sou um psicopata. Que sono. Por que não vou embora para casa se não estou fazendo nada? Por quê? O que mais me incomoda é este incômodo, como se algo perverso fosse acontecer imediatamente após eu me despedir. A perversão é minha. Todos são perversos. Eu sou pervertido. A gota de suor cai pela face.


Vou beber água. Água. Mas será que tenho forças para levantar da cadeira? Por que pergunto tanto se sei as respostas e elas são sempre as mesmas, a martelar, a maltratar?


- Doutor, telefone para o senhor.


Aquelas palavras soavam familiares. Problemas. O problema maior é que o incômodo, incomoda. Provavelmente alguém estaria a me cobrar algo que prometi e não fiz, ou que tenha estabelecido um prazo, e perdi. Ou seria o gerente do banco, esqueci-me de pagar algo. Minha assinatura no cheque não confere. Estou atrasado.


- Sim.


O que mais eu tenho que fazer? Tem aquele cara que me ligou na segunda feira. O que ele quer? A Carolina. Preciso ligar para ela. Minha sede. Água. Quero água. Ela vai querer ir ao cinema hoje. Justo hoje. No sábado não tem aquela maldita prova? Não, sábado não. A Carolina.


Seca. Ela está uma vara comigo. Será que não tem como isso melhorar. Melhorar o quê, se eu mesmo não faço nada? Vou levá-la para jantar. Onde? Cinema? Ela podia me entender só de vez em quando, não podia? E eu me entendo? Lembrei, tenho que escrever para o Luís.


Caro Luís, respondendo ao seu último questionamento, datado de dez de outubro passado, entendo possíveis os encaminhamentos sugeridos. Sugiro, entretanto, que a decisão sobre o que faremos no caso específico suscitado seja debatida na reunião do dia dezesseis. Podemos coletar outras opiniões e dificilmente o setor de Recursos Humanos irá concordar integralmente com a proposta formulada.


Mas será que eu não devia ligar antes para o Luís? Mandar este texto assim, ainda que por e-mail, pode ser que a secretária leia. O RH pode saber desta minha opinião sobre eles e melar tudo. Mas, melar o quê? Eles sempre estão contra, estão atrasados. Atrasado eu também estou. Mas por que cargas d´água o próprio Luís não encaminhou isso? Carolina... tenho que ligar. Sábado. Que dor de estômago. Azia? Só o que me faltava não poder mais beber café!


Recordo que em caso análogo o Departamento de Recursos Humanos recomendou que fossem analisados os riscos de cada hipótese e que fossem refeitas as planilhas, detalhando os apontamentos elencados. Portanto, temos que elencar tais pontos antes de adotarmos uma das alternativas plausíveis. Nossa, será que alguém vai entender isso? Onde eu quero chegar? Sei lá. Sede. Sono. Carolina.


E esse ventilador? Quando, eu me pergunto, quando irão consertar o ar condicionado? Quando? Água. O corredor fica logo ali. Eu mesmo vou pegar a água. Assim, ando um pouco. Estou cansado de ficar sentado. Incômodo. Dor de barriga. Fome. E sede. Não tinha reparado como a Júlia está bonita hoje. Que vestido. Cabia minha mão inteira ali. Levo a aspirina? Esqueci de comprar. Maldito suor, maldito ventilador, maldito calor, maldita a regra que diz que quem está no oitavo andar não pode fumar. Os idiotas vêm fumar aqui. Por isso, por isso não queria vir aqui no bebedouro. É isso.


Isso o quê? Água. Podiam consertar o ar na minha sala. Podiam. Bia. A Beatriz poderia pedir isso. Coitada, já disse ontem. Saco. Mas que sono. Deixa-me abrir o arquivo do Luís. Vou mandar por e-mail, para ele e com cópia para a Beatriz. Ela sabe o que fazer se a chata da secretária ligar. Esta droga de cadeira, porque será que insistem em comprar cadeiras deste tipo. Tenho a reunião. A Júlia está bonita.


- Doutor?
- Beatriz?


Sempre insistem em marcar reuniões. Poderíamos fechar aquilo noutro dia. Aquilo o quê, já que não definiram nada. Pensando bem eles queriam que eu participasse da reunião só para garantir mais um rabo, caso desse tudo errado. Sei lá. Minha cabeça dói. A Beatriz é uma santa. Quando é o aniversário dela? Esse babaca do prefeito... que bela merda esta administração. Que trânsito. Que gosto amargo na boca. Acre. Pensei na palavra acre. Cadê o dicionário? Sede.


Almoço. Não queria almoçar sozinho não. O e-mail do Luís já foi. O Norberto. A Júlia, que horas é a reunião?


- Beatriz, a Júlia.
- Sim.


Onde? Sempre o mesmo lugar. Mas o pão de azeite é bom. As paredes. As mesmas paredes de sempre. Os quadros. O calor, insuportável. Esta minha azia. Este sono. Preciso tomar coragem e trazer um colchão para cá. Quem sabe não faço uma sesta todos os dias. Faz tempo que eu não tiro férias. Tempo demais. Pra quê? A Carolina um dia pede as contas. Será que o Valter ficou irritado com a minha pergunta sobre a Regina? A Laura depois daquele dia nem falou direito comigo. A Regina é uma besta. Acho que vou pedir estrogonofe. Vou levar algo para o Valter. Um vinho. O Norberto disse que sim. Será que ele entendeu o memorando. Suor. Latejando. Aspirina? Onde está? Os valores mudaram. Catzo, que papo é esse de valores? Estou ficando velho. Já sei, vou jantar com a Carolina hoje.


Lembrei! É isso!!! O caso do Doutor Gomes!!!! É lá o precedente! O juiz é o mesmo!


- Beatriz, cancela o almoço com a Júlia. E avisa a Carolina, chegarei tarde.


Acho que encontramos.


2006. 2007. 2008. vários dias, várias revisões.

2 comentários:

Anônimo disse...

Só você mesmo Amaral, para escrever belissimos textos como este. Grande Abraço. ah e quando teremos um texto dos Prenuncios publicado?rsrsrs. Amaral os prenuncios do ano passado ja fora juntados e se Deus quiser logo logo o livro sairá!Abração

Anônimo disse...

Chego a sentir o cansaço.
A dor de cabeça.

E me dá sede.

Sede e remorso em te passar a agenda, o recado...o mesmo recado de novo.