Esta é minha mercearia. Na minha quitanda deixo impressões, ficções, ideais e idéias.
Uma das experiências mais legais deste lugar foi a "blogagem" coletiva feita em maio deste ano... http://quodores.blogspot.com/2008/05/coisas-do-brasil-blogagem-coletiva.html
Conheci gente nova e, mais do que em qualquer outro texto, segundo os indicadores pouco confiáveis que disponho, os aviamentos e miudezas deste armarinho foram garimpados, consultados, pesquisados, tocados. E convenhamos, temos nossas pequenas boticas para isso. Para que nossos textos tenham contado com o mundo.
A minha amiga de blogosfera Andréa Motta, dos deliciosos "Leio o mundo assim" e "Conversa de Português", é quem organiza este encontro. Diversos espaços na rede e a idéia é escrever sobre nossas cidades, de nascimento ou adoção. Ler, e reler, os textos produzidos é muito bom. O resultado é diverso e o alimento nutritivo.
Visitem os textos. E aqui está o link para o blog da Andréa: http://leioomundoassim.blogspot.com/
Vale dizer que este texto aqui dialoga com o outro. Pode até ser que o resultado final seja Chover no Molhado. Mas a cidade tem a alcunha de terra da garoa. Talvez a chuva explique...
Bom passeio.
E Andréa... muito obrigado. E ano próximo tens companhia para ver o jogo do Vasco com a Lusa!
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As garoas da cidade e seu guarda chuva
Uma cidade tem esquinas, estatísticas, histórias, amores, desamores, desavenças, descasos, quitutes, trens, saudade e melancolia. Impossível pensar na cidade sem contar os contrastes, os desníveis, os dissabores. Todos os dias em todos os jornais há coisas para contar, sobre o trânsito quilométrico, sobre a tétrica violência na senzala e sobre os casos de bonança da casa grande. Indecifrável aos olhos de muitos que a olham de longe e absurdamente presente na vida de cada um que vive, mora, habita, sobrevive. A capital do progresso. E do regresso. Do retrocesso e da vanguarda. Mas que ainda não sabe para onde ir.
A cidade acorda cedo. Ou dorme tarde. Não há aquele horário da sesta, do descanso, do andar descalço. É sempre sapato. Normalmente apertado. Há cinzas no ar que se respira. Cinzas de tudo, de pó de fábrica ao pó de grafite. Há novelos, mas há desvelo, se soubermos procurar. Tem mais carros que gente. Tem mais gente que precisa de afeto e hospital do que de carro. Tem macarrão para macarronada, para sopa, para yakissoba, para doce, para fazer arte experimental. Tem templo budista e monge que dança ao som dos atabaques, conversando com algum orixá. Tem zabelê, tem besouro, tem barata e tem princesa.
O parque, mas mais asfalto. A fábrica, o desemprego e a oportunidade. A escola, a faculdade, o seminário, poucas bibliotecas e muitas igrejas. Pedreiros, tijolos, argamassa, concreto, andaime, guindaste, tapume. E palafita, barraco, papelão, latão. Tem ar condicionado, carpete, bolsa de valores. Tem calor de mosca, chão de chão e mercado de trocas, escambo. Tem neurocirurgia, átomos, telescópios e microprocessadores. Fila interminável no hospital e não tem curativo. Moderadores de apetite nas mais belas lojas do mundo descolado. Colesterol, derrame, enfarte, enfisema. E esperança, de cura, de sanidade, de saúde.
Uma cidade tem esquinas, estatísticas, histórias, amores, desamores, desavenças, descasos, quitutes, trens, saudade e melancolia. Mas única, brega, apaixonada, enlouquecida, desvairada, careta, conservadora, repleta de gente incógnita e quase bela. A cidade, do jeito dela, quase tudo. Só não digam que é insípida, inodora e sem sabor. Nem a garoa da terra é.
08. dezembro.
Segundo o Houaiss, Quodore é uma pequena porção de vinho, uma pequena porção de alimento. Também é uma bebida ordinária, um café ralo, algo para o desjejum. Aqui, são fragmentos, ideias, pensamentos tolos, outros tipos de pensamento. Enfim, um cadinho de alimento...
sábado, 13 de dezembro de 2008
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
Outro verbete
Acho que este é mais um que nasceu nos andaimes...
Sei lá.
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Conjugo, Conjugas, Conjuga...
Resolveu que era tempo de conjugar o verbo saudade. Pegou os velhos livros de gramática e redescobriu as regras mais simples para flexionar tempos verbais. Na primeira pessoa foi possível constatar aromas, sílabas, pequenas caixas de papelão. O sempre difícil pronome tu, com suas regras peculiares, redescoberto entre semblantes, nuca e um bocado de bolo de fubá. E assim foi: pretérito imperfeito e a razão perfeita do verbo.
A lousa verde e o giz branco teciam palavras outras, todas e todas relacionadas ao verbo. Com um avental branco ela declamava poemas ensinando a gramática, a estatística e os substantivos. Tinha a tez arrepiada e a cada novo vocábulo era o verbo, transitivo e direto. Mais que direto.
O verbo saudade não é verbo de cartilha. É mais para cantiga, para saudar, para comer com bolo e uma xícara de café. A fotografia, o verso e o reverso e o barulho incessante da agulha no fim do disco num tremelique da vitrola. Ouviu os pés descalços correndo pela grama molhada e o cheiro de madeira invadiu a sala de aula. Brincou de soldado, derramou tinta no papel e desceu ao rio sem ajuda.
Era mais do que hora do diploma. Do feito. Conjugações outras eram necessárias, desvencilhou-se das lágrimas e correu firme com o olhar a estante. Era mais do que hora doutro verbo. Aprendeu a conjugar o verbo saudade. Mas para respirar era outro. Num suspiro que mais parecia grito, saiu para a rua e dizem que nunca mais voltou.
Sei lá.
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Conjugo, Conjugas, Conjuga...
Resolveu que era tempo de conjugar o verbo saudade. Pegou os velhos livros de gramática e redescobriu as regras mais simples para flexionar tempos verbais. Na primeira pessoa foi possível constatar aromas, sílabas, pequenas caixas de papelão. O sempre difícil pronome tu, com suas regras peculiares, redescoberto entre semblantes, nuca e um bocado de bolo de fubá. E assim foi: pretérito imperfeito e a razão perfeita do verbo.
A lousa verde e o giz branco teciam palavras outras, todas e todas relacionadas ao verbo. Com um avental branco ela declamava poemas ensinando a gramática, a estatística e os substantivos. Tinha a tez arrepiada e a cada novo vocábulo era o verbo, transitivo e direto. Mais que direto.
O verbo saudade não é verbo de cartilha. É mais para cantiga, para saudar, para comer com bolo e uma xícara de café. A fotografia, o verso e o reverso e o barulho incessante da agulha no fim do disco num tremelique da vitrola. Ouviu os pés descalços correndo pela grama molhada e o cheiro de madeira invadiu a sala de aula. Brincou de soldado, derramou tinta no papel e desceu ao rio sem ajuda.
Era mais do que hora do diploma. Do feito. Conjugações outras eram necessárias, desvencilhou-se das lágrimas e correu firme com o olhar a estante. Era mais do que hora doutro verbo. Aprendeu a conjugar o verbo saudade. Mas para respirar era outro. Num suspiro que mais parecia grito, saiu para a rua e dizem que nunca mais voltou.
08. novembro.
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
Consertos em concerto
Alguns textos surgem literalmente do nada...
E depois é difícil se desvencilhar deles.
Vou colocar um deles aqui, para ver se alguém explica.
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Sinuosas reflexões sobre a reforma no prédio
O andaime levava ao nada do andar de cima, em reforma. E como o nada em nada acrescentasse aos riscos do dia a dia resolveu subir. É engraçado como a alma trilha o caminho do nada quando tanta coisa ainda tem que acontecer, mudar, transformar, rever, costurar: Dizer e desdizer. Enfim, andaimes estão por aí para nos levar para algum lugar. A alma reconhece. E sobe.
O nada é sempre aconchegante, no primeiro tato e contato. Como é o nada, de prima o nada muda a nossa ansiedade doentia. O nada aplaca a fúria do inconformismo e sossega os estribilhos de nossos cancioneiros de protesto. E também colabora para amenizar a fadiga, alimentada sempre que a alma sabe que para outro lugar deve ir. Ou agir.
Mas depois o nada cansa. Cansa mais do que a fadiga anterior e, pior, depois do anestésico o nada contagia o cansaço e é impossível não querer dormir. Se jogar na cama e nunca mais acordar antes de saber exatamente o porvir. Ou, pelo menos, qual a nova trilha ou caminho que devemos seguir.
O bom do andaime, neste caso, é que é sempre uma aventura boa. Há uma vertigem que as escadas não dão. E é nesta vertigem que a alma emudece e se pega pensando de fato na vida e nas coisas da alma. A lua então aparece, como que para avisar que no dia seguinte tem sol. Basta abrir a janela. E é bonito perceber que no andar em reforma tem aquela varanda enorme e se não é nada, pode ser uma bela panorâmica. A alma irrequieta começa a desejar que o nada se desfaça entre uma rede e um copo de água.
Enfim resolveu que ia descer do andaime e procurar a porta de saída. Ou a de entrada. Para o novo. Tinha medo de tudo, tremia e tinha sede. Mas descobrira o perigo fatal dos andaimes.
08. novembro.
E depois é difícil se desvencilhar deles.
Vou colocar um deles aqui, para ver se alguém explica.
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Sinuosas reflexões sobre a reforma no prédio
O andaime levava ao nada do andar de cima, em reforma. E como o nada em nada acrescentasse aos riscos do dia a dia resolveu subir. É engraçado como a alma trilha o caminho do nada quando tanta coisa ainda tem que acontecer, mudar, transformar, rever, costurar: Dizer e desdizer. Enfim, andaimes estão por aí para nos levar para algum lugar. A alma reconhece. E sobe.
O nada é sempre aconchegante, no primeiro tato e contato. Como é o nada, de prima o nada muda a nossa ansiedade doentia. O nada aplaca a fúria do inconformismo e sossega os estribilhos de nossos cancioneiros de protesto. E também colabora para amenizar a fadiga, alimentada sempre que a alma sabe que para outro lugar deve ir. Ou agir.
Mas depois o nada cansa. Cansa mais do que a fadiga anterior e, pior, depois do anestésico o nada contagia o cansaço e é impossível não querer dormir. Se jogar na cama e nunca mais acordar antes de saber exatamente o porvir. Ou, pelo menos, qual a nova trilha ou caminho que devemos seguir.
O bom do andaime, neste caso, é que é sempre uma aventura boa. Há uma vertigem que as escadas não dão. E é nesta vertigem que a alma emudece e se pega pensando de fato na vida e nas coisas da alma. A lua então aparece, como que para avisar que no dia seguinte tem sol. Basta abrir a janela. E é bonito perceber que no andar em reforma tem aquela varanda enorme e se não é nada, pode ser uma bela panorâmica. A alma irrequieta começa a desejar que o nada se desfaça entre uma rede e um copo de água.
Enfim resolveu que ia descer do andaime e procurar a porta de saída. Ou a de entrada. Para o novo. Tinha medo de tudo, tremia e tinha sede. Mas descobrira o perigo fatal dos andaimes.
08. novembro.
segunda-feira, 10 de novembro de 2008
Conversas de Estio
Roupas, tecidos e estações climáticas
Adoro vestidos. Eles são para mim como o sol. Há nos vestidos algo encantador, algo de sobrenatural. Os longos insinuam tornozelos e há ali um convite desesperado pela panturrilha. Os médios revelam joelhos e é este um fraco de minha alma: Joelhos. Os curtos, os mínimos, deixam as coxas todas à mostra, aquele par de vidas, de calor, de trilhas sinuosas em direção ao mais perfeito dos vales.
Os inteiros podem também revelar os seios. O colo. A parte mais gostosa de uma lida. E imaginar aquele doce caminho que começa por ali e se encerra abaixo do ventre é simplesmente um sonho perfeito. Desses sonhos que nos tiram o sono, nos deixam alegres e nos fazem respirar.
Adoro vestidos, saias, tubinhos. Gosto dos pretos, básicos. Dos coloridos. Dos hippies, dos indianos. Dos frescos e dos de festa. Adoro aquelas penugens que elas tentam disfarçar, mas reveladoras das mais íntimas intenções, ao arrepio. E é inacreditável o quão belo é um por do sol num vestido branco, transparentes vielas ao infinito indeterminável das possibilidades repletas.
Os floridos me deixam animados e o sol brilha intensamente naqueles que tem alça, alcinhas que nos deixam ver os tecidos do sutiã ou as sardas, as pintas, os calores e aquelas gotas de suor indiscretas, típicas de sol quente.
Ela, que sabe de tudo isso, deixa os vestidos para os dias de sol, para tomar um café na padaria, para comer um simples pãozinho francês ou para perambular pelos corredores de minhas fantasias e volúpia. Ou simplesmente para subir escadas, desfilando numa passarela que o meu imaginário sorrateiro tem deleites e texturas.
Escrever este manifesto, esta ode para a mais nobre das vestimentas, a mais tenra das recordações, a mais suculenta das formas, é uma forma de dizer que o verão está chegando. Um alerta. Os armários, estes guardiões imperfeitos e suas donas maravilhosas, estão ansiosos pelos dias mais quentes e para os vestidinhos mais bonitos e escondidos. Os espelhos agradecem. E nós? Nós ficamos aqui a escrever panfletos sobre pernas, joelhos, panturrilhas, pés, coxas, bumbuns, colos, sardas, pintas, suores e canções de amor.
Pode não ser muito, mas é tudo.
2008. novembro, 10.
lista para a despensa
breves cotidianas,
guarda roupa,
vinho quente
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
Armazém
Puxa vida... Sem textos novos.
Mas coloco um velhinho que gosto muito, já publicado nos Bolonistas:
http://osbolonistas.zip.net/arch2008-03-01_2008-03-31.html#2008_03-19_17_50_23-2402205-25
Gosto muito dos sabores e cheiros deste texto. Dá fome.
Espero que gostem.
____________________________________________
Das outras....
Bolonistas em tempos de dérbi...
Sincera e honestamente, nunca tinha reparado naquela pequena loja de secos e molhados que fica na esquina de minha rua. Talvez a pressa do dia a dia. Ou, quem sabe, o fato de normalmente estar de carro. É difícil se andar a pé na cidade grande. Muito difícil. O que é uma pena, concluí.
A loja até que era simpática. Um balcão de madeira bem trabalhado, daqueles antigos. A madeira parecia ser carvalho. Não conheço madeira suficientemente para atestar fé, entretanto. No balcão, uma porção de recipientes de vidro com diversos acepipes de encher a boca d'água: Amendoim, castanha de caju, castanha do Pará, figos secos, azeitonas em conserva, das pretas e das verdes, sardela, pão de lingüiça, maçã desidratada e uma porção de outras coisas visualmente atraentes.
Entrei na loja por acaso, é verdade. Parei só para perguntar se sabiam onde era a Rua tal e qual. Mas o aconchego e o cheiro dos salgados, doces e da madeira me detiveram. E uma enorme bandeira da Ponte Preta ornava o local, atrás do balcão. Inevitável puxar assunto.
O dono do armazém era um senhor de longas suíças, barrigudo e com cara de boa gente. Proseador. Foi logo contando a história do boteco. Abriu uma garrafa de cerveja enquanto preparou uma pequena travessa com as sementes. No tomate seco despejou azeite e me ofereceu guardanapo.
O nome da peça rara era Varela de Vieira. Varela, em homenagem ao carrasco Obdulio, da seleção uruguaia de 50. Nascido no Uruguai, o pai dele era um português que trabalhava no consulado luso em Montevidéu quando o pequeno nasceu. Era a justa homenagem para o povo que o acolhera, me explicou sobre as razões do pai.
E contou que criança foram deslocados para o Consulado em São Paulo. E que o pai ficou viúvo e, desencantado, resolveu largar a carreira diplomática. Acabou em Campinas, dando aulas de direito. Lá conheceu Isadora, e logo vi o retrato da bela mulher, no lado oposto ao da bandeira da Ponte Preta. Isadora era sem dúvida a mulher mais bonita do mundo. A fotografia não deixava dúvidas. O velho retrato destacava um rosto de mulher com aquele sorriso de parar o tempo e os olhos negros de querer a noite. E ela com uma camisa verde, inacreditavelmente verde: Guarani.
Durante anos o velho tentou se aproximar de Isadora, em vão. Ela não notava aquele viúvo, pai do menino Varela. E jurou o bonachão, enquanto descontraidamente abria nova garrafa de cerveja, desta feita de outra marca e mais gelada, que o velho ficou até doente. A outra paixão do velho era o Benfica, me disse. Mas em nome da nova paixão começou a freqüentar os jogos do Guarani, saber a escalação e até vestir a camiseta verde. Pela simples razão da moçoila ser torcedora fanática do Bugre. Vestia o manto nos dias de folga, cantava o hino nas horas vagas e desfilava impropérios nas arquibancadas do Brinco de Ouro da Princesa.
Mas nada. Isadora nunca dera um olhar sequer ao velho pai do Varela. Abriu um sorriso largo, destampou o vidro do alicce, encharcou um naco de pão e sem que eu dissesse nada encheu outro copo para mim: “Até que um dia o meu pai desistiu daquilo tudo sem sentido e começou a andar com a camisa da Ponte Preta, só para demonstrar profunda irritação.”
E um dia de domingo, no tempo em que ir ao estádio era programa de domingo, dia de clássico na cidade, a moça fitou o moço que levava o filho ao Moisés Lucarelli: “Varelinha, que camisa mais feia!!!”. “Vem cá... quem é este senhor, que você nunca me apresentou?”. “Professora, este é meu pai...”. Dois meses depois, casaram.
08.março, 19.
Mas coloco um velhinho que gosto muito, já publicado nos Bolonistas:
http://osbolonistas.zip.net/arch2008-03-01_2008-03-31.html#2008_03-19_17_50_23-2402205-25
Gosto muito dos sabores e cheiros deste texto. Dá fome.
Espero que gostem.
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Das outras....
Bolonistas em tempos de dérbi...
Sincera e honestamente, nunca tinha reparado naquela pequena loja de secos e molhados que fica na esquina de minha rua. Talvez a pressa do dia a dia. Ou, quem sabe, o fato de normalmente estar de carro. É difícil se andar a pé na cidade grande. Muito difícil. O que é uma pena, concluí.
A loja até que era simpática. Um balcão de madeira bem trabalhado, daqueles antigos. A madeira parecia ser carvalho. Não conheço madeira suficientemente para atestar fé, entretanto. No balcão, uma porção de recipientes de vidro com diversos acepipes de encher a boca d'água: Amendoim, castanha de caju, castanha do Pará, figos secos, azeitonas em conserva, das pretas e das verdes, sardela, pão de lingüiça, maçã desidratada e uma porção de outras coisas visualmente atraentes.
Entrei na loja por acaso, é verdade. Parei só para perguntar se sabiam onde era a Rua tal e qual. Mas o aconchego e o cheiro dos salgados, doces e da madeira me detiveram. E uma enorme bandeira da Ponte Preta ornava o local, atrás do balcão. Inevitável puxar assunto.
O dono do armazém era um senhor de longas suíças, barrigudo e com cara de boa gente. Proseador. Foi logo contando a história do boteco. Abriu uma garrafa de cerveja enquanto preparou uma pequena travessa com as sementes. No tomate seco despejou azeite e me ofereceu guardanapo.
O nome da peça rara era Varela de Vieira. Varela, em homenagem ao carrasco Obdulio, da seleção uruguaia de 50. Nascido no Uruguai, o pai dele era um português que trabalhava no consulado luso em Montevidéu quando o pequeno nasceu. Era a justa homenagem para o povo que o acolhera, me explicou sobre as razões do pai.
E contou que criança foram deslocados para o Consulado em São Paulo. E que o pai ficou viúvo e, desencantado, resolveu largar a carreira diplomática. Acabou em Campinas, dando aulas de direito. Lá conheceu Isadora, e logo vi o retrato da bela mulher, no lado oposto ao da bandeira da Ponte Preta. Isadora era sem dúvida a mulher mais bonita do mundo. A fotografia não deixava dúvidas. O velho retrato destacava um rosto de mulher com aquele sorriso de parar o tempo e os olhos negros de querer a noite. E ela com uma camisa verde, inacreditavelmente verde: Guarani.
Durante anos o velho tentou se aproximar de Isadora, em vão. Ela não notava aquele viúvo, pai do menino Varela. E jurou o bonachão, enquanto descontraidamente abria nova garrafa de cerveja, desta feita de outra marca e mais gelada, que o velho ficou até doente. A outra paixão do velho era o Benfica, me disse. Mas em nome da nova paixão começou a freqüentar os jogos do Guarani, saber a escalação e até vestir a camiseta verde. Pela simples razão da moçoila ser torcedora fanática do Bugre. Vestia o manto nos dias de folga, cantava o hino nas horas vagas e desfilava impropérios nas arquibancadas do Brinco de Ouro da Princesa.
Mas nada. Isadora nunca dera um olhar sequer ao velho pai do Varela. Abriu um sorriso largo, destampou o vidro do alicce, encharcou um naco de pão e sem que eu dissesse nada encheu outro copo para mim: “Até que um dia o meu pai desistiu daquilo tudo sem sentido e começou a andar com a camisa da Ponte Preta, só para demonstrar profunda irritação.”
E um dia de domingo, no tempo em que ir ao estádio era programa de domingo, dia de clássico na cidade, a moça fitou o moço que levava o filho ao Moisés Lucarelli: “Varelinha, que camisa mais feia!!!”. “Vem cá... quem é este senhor, que você nunca me apresentou?”. “Professora, este é meu pai...”. Dois meses depois, casaram.
08.março, 19.
terça-feira, 21 de outubro de 2008
Exercícios
Faz tempo que não escrevo. E que não apareço. Fiz algumas estrofes para animar.
_________________________
Quodores é cadinho
De alimento e paixão.
Quodores é um pouco
De vinho e tesão.
Quodores, assim que é bom.
Café e pão.
outubro/08
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Quodores é cadinho
De alimento e paixão.
Quodores é um pouco
De vinho e tesão.
Quodores, assim que é bom.
Café e pão.
outubro/08
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
Fahrenheit desafiando o avanço tecnológico
Reflexões sobre a pós modernidade na obra de um termômetro de rua
A modernidade estraga relações. Os celulares exaltam compromissos inadiáveis e revelam segredos escondidos. As cartas não tem perfume, nem lembrança. Saltam da tela as letras de antes, sem cheiro entretanto. E os desencontros, infortúnios e pequenas desavenças, conflito quase armado. O moderno é impetuoso, rápido, célere, superfície.
Ainda as idéias confusas e insistentes. Da noite anterior. Dos inevitáveis incidentes entre dois. Do diálogo imperfeito. Percebeu que dois monólogos não se concatenam. Dos incidentes, os medos. Os velhos traumas. As ansiedades. As expectativas. O dia seria longo, numa fusão de raiva e arrependimento. E de noite dormida aos pedacinhos, num acorda e dorme irritante e cansativo.
Mas fazia um calor absurdo. Um calor de derreter as idéias mais chatas. Aquela quentura que entra pela janela e se instala pela sala toda. Por todos os lados. Como se o dia tivesse uma cor avermelhada. O suor pela face. Os corpos molhados. E as idéias se misturam. E aquele calor, o suor e o pensamento fixo na história deles. E um calafrio pela espinha lembrando da outra noite, também não dormida. Um arrepio. E as idéias confusas viram idéia fixa.
Fixa entre dois corpos, que mais que tudo são dois. E se complementam. E divergem. O suor, a vontade, o calor, o úmido e o constante. Boca ressecada, carne trêmula. Como o filme de Almodovar, que ele não gosta. Mas da cena, sim. Inevitável. E dos incidentes, dos monocórdios, dos receios e dos ressentimentos, a lembrança que tudo poderia ser resolvido. Ou adiado, entre corpos.
E aproveitando a modernidade mandou uma mensagem para o celular dele: "Quero você.". Ele sem titubeios, respondeu. Via mensagem eletrônica, instantânea, num átimo: "Em casa, 21hs. Venha de saia.".
quinta-feira, 28 de agosto de 2008
Bangue Bangue à Italiana
Confissões da Segunda Paternidade
A noite boa.
Gosto de western. Ou velho-oeste. Filmes que acostumei assistir já menino, ou desde menino. E gosto dos italianos, também. Lembro de uma sessão de espaguetes na Record, nos anos setenta. Tinha uma música, tema predileto de muito de minhas memórias... “tan tan tan tararan... tan tan tan tararaaam”. Digo isto porque tenho um nome para filme de velho oeste na ponta da língua: “O assombroso significado do silêncio”. É para ser um desses dramáticos, com densidade nos temas que afetam a psique humana. Um “A Face Oculta” ou “Meu ódio será tua herança.” Quiçá, um “Bravura Indômita”. Dos últimos, é impagável o “Os Imperdoáveis”. Clint merece todos os prêmios.
Eram dez da noite. Um pouco mais, um pouco menos. Quem sabe? Naquela altura, este dado era o menos importante. Estávamos degustando, e a palavra é esta mesmo, de degustar, de saborear, de sorver, um tinto espanhol, recentemente adquirido. E como caía bem o tal. Gostoso. Preciso anotar o nome e a safra, se bem que a safra eu deixo para os enólogos. Gosto de ser amador, no vinho. Bebemos sem compromissos estéticos. E eram boas companhias, um queijo tipo meia cura, um ementhal, um outro provolone. Copa. Pão. E sardela, acho. Eu e ela gostamos assim, sem compromissos. Temas variados, de novela, futebol, política, as coisas da família, a escola do menino, o dia, a política, os escritórios. Falamos até dos livros que líamos, sem o menor pudor. Gostamos assim, deste jeito. Acho que eu estava descalço. Estou sempre descalço. Ela, não. Não gosta. Mas algo estava a nos incomodar e sem querer, ou querendo muito, pensamos na mesma coisa, na mesmíssima coisa: "Os dois estão muito quietos".
Muito. Do quarto deles nenhum sinal de transtorno. Era a primeira vez em alguns dias que nenhum dos dois, naquele horário, não dava as caras. Ou para mamar ou para resmungar que não queria dormir. “Este silêncio me apavora”. Foi esta a frase que disse, interrompendo algum assunto referente a crise na formação do gabinete ministerial em Júpiter, ou Plutão, não me lembro. E ela, sem se aborrecer pela repentina mudança se assunto, assentiu com a cabeça... “Amor, estou apavorada...vai lá ver se tá tudo bem...”
Óbvio, estaria tudo bem. Os dois estariam dormindo, cada qual em sua cama, ou berço, no caso do pequeno. Um, totalmente descoberto, teria jogado toda a coberta no chão. E o outro, totalmente coberto, porque a mãe sente frio por ele, por mim, pelo outro e por ela mesmo. Mas fui, pé com pé, de fininho, observar. E era aquilo mesmo. Voltei e olhei para ela, estava mais bonita do que de costume, e emendei: “Tá tudo bem, tranqüilo.” Não agüentei, porque por dentro era só temor, e emendei, novamente: “Tranqüilo até demais....”. Ela sorriu, mas me entendeu.
Batata, batatinha. Quando resolvemos continuar nosso papo bom, sem pressa, sem abrir desesperadamente aquele chocolate comprado com gosto, ou comer aquele bolinho ou, até, aquele sorvete, para evitar que, antes do fim, tudo acabasse, começou o festival. Primeiro, foi um resmungo leve, quase não percebemos. Achei melhor, entretanto, diminuir o som. Era jazz, acho. Depois, bem, depois o que aconteceu foi aquilo que todos estão imaginando. Do resmungo, uma cólica mal resolvida. Devia ser fome, também. Do resmungo, choro. Do choro, berro. Do berro, desespero e contorção. Eu corria para um lado, para arrumar as coisas, deixar a poltrona confortável para ela. E ela tentava segurar a onda, evitar o inevitável. Como resmunga o pequeno. Será que o mais velho resmungava assim? Acho que sim, sei lá. Mas era um só, o grande. Agora, são dois. E pronto, nesse divagar ouço um berro e outro choro, e outro, dois a chorar. Não preciso escrever que algo próximo do pânico se instalou naqueles quase cem metros quadrados do apartamento. O som? Deve ter acabado o Cd durante a epopéia. Fui para um lado, ela para o outro. A cada resmungo mais alto do pequeno, o outro arregalava os olhos. “O que vocês estão fazendo com ele?” Será que era isso que ele perguntava? “Desliga esse vitrola, eu quero dormir!!!” Ou era isso? Isso ou aquilo, o fato é que demorou uma hora e pouco para o grande dormir. O pequeno, não. Dormiu antes. Cantei para os dois. Ao sair do quarto, a mãe me olhou exausta. Acho que ia dormir. Tinha a louça, pensei. O grande dormiu. Ufa. Voltou o silêncio, este muito mais próximo da realidade.
Arrumando a louça, lá de longe, cheguei a ouvir uns chorinhos causados pela barriga que se contorce e um corpo que se remexe, querendo achar posição para dormir. Ufa. Nada melhor que uma boa noite normal, tudo tranqüilo. Na medida certa, na dose exata. Fiz o meu café e fui dormir, que dali a pouco o pequeno acordou para mamar.
2006. janeiro.
sexta-feira, 15 de agosto de 2008
Etmologias Lisérgicas II
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Um Conto Vulgar de Palavras Molhadas
Começaram a trocar palavras. Sussurros. E as palavras sabemos tem sabores, cores, cheiros, texturas. Como a pele, o beijo, o sexo, o calor e a noite. As palavras iam revelando intenções óbvias, mas o vagar e as letras iam conspirando, transpirando, elevando.
Das palavras usuais, do mel, do belo e do doce, e das carícias aos ouvidos. Do copo de água para matar a sede. A outra sede. Fluíam vontades entremeadas com fluídos ainda presentes, molhados, úmidos nas roupas de cama amassadas e desnorteadas.
Escapavam gemidos, grunhidos, arranhões e pequenos toques. E palavras nada sutis de elogio ao falo, à vulva, aos lábios todos. Todas as palavras se encaixando como o leito, o feito, o nexo, a fala, o tato. E nessas horas as palavras têm cheiros diversos, todos, entretanto, com o mesmo significado, a mesma linguagem e a tara crescente, de um pelo outro. Ou de outra, pelo um.
E as palavras seguiam o seu jogo de arrepiar peles, inebriar sabores, incendiar ambientes. E as semânticas mais simples se transformavam em objetos eróticos, daquela sanha evidente, latente, pulsante. E madeiras firmes e pequenas caixinhas de rapé molhadas vão se intercalando, abraçando, tomando gosto e ganhando uma saborosa vulgaridade, de sentidos léxicos e saliva na boca, ressecadas.
E assim deixam de ser meras palavras para serem atos, descrições, sentidos. Como um figo aberto, escancarado, sorvido, deleite. Ou uma banana rija que cresce em sabor, vigor, bojuda. E assim vão as palavras a participar do rito, borrifando pingos de suor e outros líquidos, todos juntos. Respiração.
Já não há mais palavras ditas, roupas e regras. Mas como num dicionário ou num livro de gramática, degustamos perfeitamente as frases, as orações coordenadas, os substantivos, os adjetivos e advérbios, esses matreiros conectores criando elos entre vocábulos imperfeitos. Silêncio, só os arfares. E deu para escutar um último verbo, conjugado no pretérito, antes do fim do conto...
Um Conto Vulgar de Palavras Molhadas
Começaram a trocar palavras. Sussurros. E as palavras sabemos tem sabores, cores, cheiros, texturas. Como a pele, o beijo, o sexo, o calor e a noite. As palavras iam revelando intenções óbvias, mas o vagar e as letras iam conspirando, transpirando, elevando.
Das palavras usuais, do mel, do belo e do doce, e das carícias aos ouvidos. Do copo de água para matar a sede. A outra sede. Fluíam vontades entremeadas com fluídos ainda presentes, molhados, úmidos nas roupas de cama amassadas e desnorteadas.
Escapavam gemidos, grunhidos, arranhões e pequenos toques. E palavras nada sutis de elogio ao falo, à vulva, aos lábios todos. Todas as palavras se encaixando como o leito, o feito, o nexo, a fala, o tato. E nessas horas as palavras têm cheiros diversos, todos, entretanto, com o mesmo significado, a mesma linguagem e a tara crescente, de um pelo outro. Ou de outra, pelo um.
E as palavras seguiam o seu jogo de arrepiar peles, inebriar sabores, incendiar ambientes. E as semânticas mais simples se transformavam em objetos eróticos, daquela sanha evidente, latente, pulsante. E madeiras firmes e pequenas caixinhas de rapé molhadas vão se intercalando, abraçando, tomando gosto e ganhando uma saborosa vulgaridade, de sentidos léxicos e saliva na boca, ressecadas.
E assim deixam de ser meras palavras para serem atos, descrições, sentidos. Como um figo aberto, escancarado, sorvido, deleite. Ou uma banana rija que cresce em sabor, vigor, bojuda. E assim vão as palavras a participar do rito, borrifando pingos de suor e outros líquidos, todos juntos. Respiração.
Já não há mais palavras ditas, roupas e regras. Mas como num dicionário ou num livro de gramática, degustamos perfeitamente as frases, as orações coordenadas, os substantivos, os adjetivos e advérbios, esses matreiros conectores criando elos entre vocábulos imperfeitos. Silêncio, só os arfares. E deu para escutar um último verbo, conjugado no pretérito, antes do fim do conto...
terça-feira, 29 de julho de 2008
Pudim de Leite
.
Coisa boa assim é andar descalço
Na areia fina, úmida ainda.
É comer pastel com garapa, sem pressa.
E ter água em pote de barro, fresca e de madrugada.
É a lua cheia brindando a janela
E o sol quente sem arder, no céu azul bem azul.
Coisa boa assim é escrever no guardanapo do bar
Poemas de amor ou de bom viver, como o nhoque
Ao molho bolonhesa e da sorte, com vinho tinto.
E saber ouvir o riso de crianças e sorrir também
E retribuir com olhar maroto os olhares marotos de outro alguém.
Coisa boa assim é ler Machado, Leminsky ou qualquer coisa
Boa e ler quadrinho do Calvin e respirar com a Mafalda
Viajar por aí com chorinho rasgado e cantarolar um samba do bom
Coisa boa assim é respirar um pouco de mato
E dali a pouco um outro pouco do cheiro de pão quente
Assoviar um tango e acordar sem relógio
E ver no espelho a olheira e fazer piada
É poder de vez em quando pensar no nada.
Como é bom coisa boa nesses passos da lida
Coisa boa, enfim, é assim.
08.julho
Coisa boa assim é andar descalço
Na areia fina, úmida ainda.
É comer pastel com garapa, sem pressa.
E ter água em pote de barro, fresca e de madrugada.
É a lua cheia brindando a janela
E o sol quente sem arder, no céu azul bem azul.
Coisa boa assim é escrever no guardanapo do bar
Poemas de amor ou de bom viver, como o nhoque
Ao molho bolonhesa e da sorte, com vinho tinto.
E saber ouvir o riso de crianças e sorrir também
E retribuir com olhar maroto os olhares marotos de outro alguém.
Coisa boa assim é ler Machado, Leminsky ou qualquer coisa
Boa e ler quadrinho do Calvin e respirar com a Mafalda
Viajar por aí com chorinho rasgado e cantarolar um samba do bom
Coisa boa assim é respirar um pouco de mato
E dali a pouco um outro pouco do cheiro de pão quente
Assoviar um tango e acordar sem relógio
E ver no espelho a olheira e fazer piada
É poder de vez em quando pensar no nada.
Como é bom coisa boa nesses passos da lida
Coisa boa, enfim, é assim.
08.julho
quarta-feira, 23 de julho de 2008
E o palhaço o que é???
Mais um texto da série já publicada nos Bolonistas. Já escrevi antes: xodó. Gosto muito de escrever e reler essas pequenas historietas...
Publicado originalmente aqui:
http://osbolonistas.zip.net/arch2007-10-01_2007-10-31.html#2007_10-18_15_45_30-2402205-25
_________________________________________
Bolonistas Saudosos das Outras Histórias...
O fusquinha azul subia e descia as ladeiras da cidade. Rodava, passeava, cantarolava. Munido de um estridente aparelho de som, com chiados, quase inaudíveis as frases ditas, de forma rápida. Mas elegantes. “Hoje tem marmelada? Tem sim senhor. Hoje tem goiabada? Tem sim senhor.” Era o anúncio, do circo. O circo e a cidade. As crianças todas vivendo euforia. A tenda colorida. O fusquinha.
Os olhos curiosos e pretos do pequeno Leônidas cintilavam. Camisa do Alecrim, sempre. Inseparáveis. E a bola de meia. O pai, seu Arthur, ainda inconformado com a opção do menino, vestia a camisa do ABC. Coisas de família. Simples, mas teimosos na vida.
O pai, nome Arthur por causa do genial boleiro Friedreinch, já tinha escolhido o nome do menino. Leônidas. O craque que inventara bicicleta. Que jogava para dentro da baliza a pelota com as pernas no ar. O Diamante Negro. E tinha outros planos para o filho: Ser doutor e torcedor do ABC. Assim como o avô, o pai e os tios. Nasceu num Alecrim e América, entretanto.
Desde pequeno Leônidas escolheu o Alecrim. Amor desses que não tem muita razão nem explicação. Talvez o verde da camisa. Talvez o hino. Mas foi assim. E o menino ganhou de um vizinho a camiseta cinco, inseparável. E quando o pai lhe provocava, “sarreando” a opção, respondia, de pronto: “É o único time do Brasil que teve um Presidente da República!!!”. E era. Café Filho jogou nos potiguares da vida.
O fato é que o menino não dormiu mais depois das notícias dadas pelo fusquinha. Imaginava o circo. E na volta da escola fazia questão de errar o caminho e olhar para a tenda colorida. Os animais. Os gritos. As cantorias. As bicicletas num canto. Sonhou com aquilo tudo. Uma, duas, três noites. E sábado nunca chegava.
Chegou. E foi como o Alecrim. Inimaginável alguma razão para tirar o menino do campo de terra da matriz, antes do escurecer. Mas naquele sábado o menino já estava de banho feito, antes da novena. O pai encantado levou o menino e os irmãos.
Espetáculo. Os olhos, as mãos, os pés. O corpo. O menino não imaginava aquilo. E teve o fogo, dos cuspidores. Os trapézios. Os domadores. As canções. E os palhaços. Na primeira risada estava dado o destino. O pai percebeu, por instinto. “Nem ABC, nem Doutor.”. O menino chorou ao fim do ato. E decidiu ser palhaço. O “Galante Alecrim”. Faceiro, inteligente, alegre, Chaplin. O melhor dos Carlitos. Já com quinze anos conhecia o Rio de Janeiro e a Cidade do México. Aos vinte, Lisboa. O palhaço mais feliz do mundo.
Nos festivais internacionais, convites não faltavam, foi conhecer o mundo e outros circos. Outros times. Sempre levava a inseparável camiseta cinco. E trocava com franceses, ingleses, camaroneses, poloneses, por camisetas de outros times. O “Galante Alecrim” fez fama. E seu Arthur repetia, com um imenso sorriso no rosto: “Nem Doutor, nem ABC. Mas também nunca foi América!!!”
“Uma pirueta, duas piruetas.” E num desses foi parar em Moçambique, Maputo. Circos que alegravam aquele país pobre e triste, mas de imensa alma. O sorriso das crianças todas. E um sorriso especial, que nunca mais pode esquecer. Ela vestia branco, um lindo colar e escondia a longa cabeleira no uniforme colado ao corpo. A trapezista e o palhaço. A história foi assim. Como o Alecrim.
2007.outubro
Publicado originalmente aqui:
http://osbolonistas.zip.net/arch2007-10-01_2007-10-31.html#2007_10-18_15_45_30-2402205-25
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Bolonistas Saudosos das Outras Histórias...
O fusquinha azul subia e descia as ladeiras da cidade. Rodava, passeava, cantarolava. Munido de um estridente aparelho de som, com chiados, quase inaudíveis as frases ditas, de forma rápida. Mas elegantes. “Hoje tem marmelada? Tem sim senhor. Hoje tem goiabada? Tem sim senhor.” Era o anúncio, do circo. O circo e a cidade. As crianças todas vivendo euforia. A tenda colorida. O fusquinha.
Os olhos curiosos e pretos do pequeno Leônidas cintilavam. Camisa do Alecrim, sempre. Inseparáveis. E a bola de meia. O pai, seu Arthur, ainda inconformado com a opção do menino, vestia a camisa do ABC. Coisas de família. Simples, mas teimosos na vida.
O pai, nome Arthur por causa do genial boleiro Friedreinch, já tinha escolhido o nome do menino. Leônidas. O craque que inventara bicicleta. Que jogava para dentro da baliza a pelota com as pernas no ar. O Diamante Negro. E tinha outros planos para o filho: Ser doutor e torcedor do ABC. Assim como o avô, o pai e os tios. Nasceu num Alecrim e América, entretanto.
Desde pequeno Leônidas escolheu o Alecrim. Amor desses que não tem muita razão nem explicação. Talvez o verde da camisa. Talvez o hino. Mas foi assim. E o menino ganhou de um vizinho a camiseta cinco, inseparável. E quando o pai lhe provocava, “sarreando” a opção, respondia, de pronto: “É o único time do Brasil que teve um Presidente da República!!!”. E era. Café Filho jogou nos potiguares da vida.
O fato é que o menino não dormiu mais depois das notícias dadas pelo fusquinha. Imaginava o circo. E na volta da escola fazia questão de errar o caminho e olhar para a tenda colorida. Os animais. Os gritos. As cantorias. As bicicletas num canto. Sonhou com aquilo tudo. Uma, duas, três noites. E sábado nunca chegava.
Chegou. E foi como o Alecrim. Inimaginável alguma razão para tirar o menino do campo de terra da matriz, antes do escurecer. Mas naquele sábado o menino já estava de banho feito, antes da novena. O pai encantado levou o menino e os irmãos.
Espetáculo. Os olhos, as mãos, os pés. O corpo. O menino não imaginava aquilo. E teve o fogo, dos cuspidores. Os trapézios. Os domadores. As canções. E os palhaços. Na primeira risada estava dado o destino. O pai percebeu, por instinto. “Nem ABC, nem Doutor.”. O menino chorou ao fim do ato. E decidiu ser palhaço. O “Galante Alecrim”. Faceiro, inteligente, alegre, Chaplin. O melhor dos Carlitos. Já com quinze anos conhecia o Rio de Janeiro e a Cidade do México. Aos vinte, Lisboa. O palhaço mais feliz do mundo.
Nos festivais internacionais, convites não faltavam, foi conhecer o mundo e outros circos. Outros times. Sempre levava a inseparável camiseta cinco. E trocava com franceses, ingleses, camaroneses, poloneses, por camisetas de outros times. O “Galante Alecrim” fez fama. E seu Arthur repetia, com um imenso sorriso no rosto: “Nem Doutor, nem ABC. Mas também nunca foi América!!!”
“Uma pirueta, duas piruetas.” E num desses foi parar em Moçambique, Maputo. Circos que alegravam aquele país pobre e triste, mas de imensa alma. O sorriso das crianças todas. E um sorriso especial, que nunca mais pode esquecer. Ela vestia branco, um lindo colar e escondia a longa cabeleira no uniforme colado ao corpo. A trapezista e o palhaço. A história foi assim. Como o Alecrim.
2007.outubro
quinta-feira, 10 de julho de 2008
Inquietas divagações
Estás inquieta?
Teu olhar me espreita, castanho e intenso.
Escrever poemas, discorrer dilemas.
E se entre versos, compassos, letras e sonhos
Descobrir tua pele perfumada, arrepiada e meu olhar
Detido nas trilhas percorridas
No corpo inteiro da cama toda.
E se entre tudo e mais um pouco
Ainda assim, teu gosto ficar na boca
Ressecada, entre palavras, sussurros e teu beijo
E se a cada linha percorrida, palmo a palmo te reconhecer
Gosto de beijo, saliva e teu cheiro
E nas linhas descritas teus traços, curvas e minha euforia.
Será que este dilema não se resolvia?
E este poema para tua inquietude oferecia...
.
quarta-feira, 2 de julho de 2008
Demônios Sutis
Comiserações de Uma Mente Aparvalhada
Dias e noites e noites e dias. A velha e boa amiga, não tão boa, é verdade, insônia reverberava nas idéias confusas e complexas. Havia um cansaço físico, um esgotamento muscular, um sono petrificante consumindo as outras horas do dia. A vontade era de abrir a primeira caixa de remédios e uma dose cavalar para trazer o sono. Uma idéia idiota, reconhecia a razão. O problema era outro.
Afinal, já não conseguia esconder para o próprio consciente o que o inconsciente já havia reconhecido, talvez em algum ano perdido da década anterior. Era chato repisar a infelicidade crônica, da qual ele não mais conseguia fugir. Tentou algum entorpecer. E ao acordar a dor foi maior. E mais aguda. Pontiaguda.
Naquela noite decidiu que era preciso se reinventar. Recriar. Renascer. Percebeu, em lenta ruína, e entre impropérios desferidos pela acidez estomacal, que este era um discurso tolo, ingênuo, tosco e frágil. Tão frágil quanto a louça despedaçada no café da manhã. Sentiu piedade e logo em seguida, ódio. Era a constatação febril e irremediável do beco sem saída.
Caminhava exausto pela casa, sabedor da companhia indelicada do sono difícil e do transpirar em excessos. Sentia, agora, o mundo inteiro. Neste processo de flagelação quase despercebida, de depressão aterrada e de teimosia infantil resolveu mais uma vez que era hora de reagir.
E naquela noite não ligou a televisão, não abriu o pacote de batata frita, não devorou o pote de sorvete e não dormitou ouvindo os salmos de salvação e alguma benção ou as fofocas de ocasião que preenchem as programações noturnas infernais do aparelho de tevê. Foi escovar os dentes. Um pijama. E pensou em andar de bicicleta no parque. Não era nada, sabia. E não era o fim, tinha certeza.
07. setembro.
Dias e noites e noites e dias. A velha e boa amiga, não tão boa, é verdade, insônia reverberava nas idéias confusas e complexas. Havia um cansaço físico, um esgotamento muscular, um sono petrificante consumindo as outras horas do dia. A vontade era de abrir a primeira caixa de remédios e uma dose cavalar para trazer o sono. Uma idéia idiota, reconhecia a razão. O problema era outro.
Afinal, já não conseguia esconder para o próprio consciente o que o inconsciente já havia reconhecido, talvez em algum ano perdido da década anterior. Era chato repisar a infelicidade crônica, da qual ele não mais conseguia fugir. Tentou algum entorpecer. E ao acordar a dor foi maior. E mais aguda. Pontiaguda.
Naquela noite decidiu que era preciso se reinventar. Recriar. Renascer. Percebeu, em lenta ruína, e entre impropérios desferidos pela acidez estomacal, que este era um discurso tolo, ingênuo, tosco e frágil. Tão frágil quanto a louça despedaçada no café da manhã. Sentiu piedade e logo em seguida, ódio. Era a constatação febril e irremediável do beco sem saída.
Caminhava exausto pela casa, sabedor da companhia indelicada do sono difícil e do transpirar em excessos. Sentia, agora, o mundo inteiro. Neste processo de flagelação quase despercebida, de depressão aterrada e de teimosia infantil resolveu mais uma vez que era hora de reagir.
E naquela noite não ligou a televisão, não abriu o pacote de batata frita, não devorou o pote de sorvete e não dormitou ouvindo os salmos de salvação e alguma benção ou as fofocas de ocasião que preenchem as programações noturnas infernais do aparelho de tevê. Foi escovar os dentes. Um pijama. E pensou em andar de bicicleta no parque. Não era nada, sabia. E não era o fim, tinha certeza.
07. setembro.
terça-feira, 24 de junho de 2008
Vinte e quatro de junho
“Olha pro céu meu amor...”
Desconhecia outra forma de aproximação. Era só o correio elegante das festas de São João. Uma timidez atroz o acompanhava. Era imensa, tal qual um elefante num jardim. Mas o correio de São João o tornava valente, bonitão, boa praça, cavalheiro, poeta, bom de dança, papo firme. E não era preciso quentão nem vinho quente.
Foi no correio que conheceu Rosa. E com Rosa dançou quadrilha, pegou na mão, beijou bochecha, encontrou lábios, namorou, se deitou, e namorou, fez amor, sacanagem, massagem e tudo então. Mas perdeu Rosa, numa discussão sobre botão e cerzir. E São João também lhe trouxe a doce Margarida, completa, mulher vivida, mais velha e sabida. E com esta paixão aprendeu o que era traição. E este amor durou só dois São João.
Os amores eram assim. Era, na quermesse da matriz, o favorito para o papel do noivo. As cartas do correio elegante eram famosas e ruborizavam as destinatárias e deixavam zangadas as esquecidas. Alguns murmuravam que fizera um pacto com o santo e sentiam inveja daquelas.
Nos papelotes de amor do elegante correio da festa conquistou Maria, Vitória, Laura, Lígia e Libertina, esta última sua maior paixão. Sempre imaginou que Libertina um dia voltaria, com ingressos para Campina Grande, passagem para Caruaru ou só para um chamego no calor da fogueira de uma noite de junho. Mas ela nunca voltou e ele reescrevia as cartas para outra senhorita, senhora, moça ou perdida. Era desse jeito que conhecia o amor.
A fogueira era quente. A festa das boas. A quadrilha animada. As barracas, cheias de prenda. Olhou para os lados, olhou para os cantos e nada das moças de pernas grossas e vestidos vermelhos, as elegantes donas do correio, as carteiras do flerte, as companheiras das palavras de amor. Sentiu desamparo e algum desatino. Perguntou para o padre, para as devotas e para o senhor de terno preto. Quase um desespero, sem respostas e só anedotas.
“Oi... posso lhe falar?”. Era uma das moças de pernas grossas, demorou a lhe reconhecer, sem o usual vestido vermelho. “Hoje não tem correio. Vamos dançar que é noite de São João.”. E sem perceber estava mais alegre que o santo, mais vivo que as labaredas, de cafuné apertado e aliança na mão, cantando: "São João disse que não... isso é lá com Santo Antônio....".
2008. junho.
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terça-feira, 17 de junho de 2008
Eclipses Lunares
Inferno Astral
Sabia perfeitamente quando o humor saía mais cedo, apressado. Reconhecia, logo ao jornal, que ler o horóscopo era o presságio de um dia absolutamente perdido. Este autoconhecimento lhe dava náuseas, não importasse o horário da constatação. E esta constatação era repentina. E certeira. E era o horóscopo.
O daquele dia discorria algo sobre vibrações lunares. No que ele logo desconfiou que fosse chover. E que, evidente, o guarda chuva ficaria no carro. Ou no escritório. Ou pior, em casa. Na mesa de centro. Esperando pelo nada.
Estas certezas absurdas, decorrentes naturais do processo de flagelação do ânimo, se tornavam materiais, não vultos, nem sombras. Eram a grandiosidade da enxaqueca, a moleza da gripe, a ânsia dos males estomacais e os pruridos da pele seca.
Tivera imensa e recorrente vontade de se prostrar na cama a espera do humor. Pelo breve retorno daquele bom estado de espírito. Jurava cancelar a assinatura do jornal, para nunca mais ter com o horóscopo. Formulou a teoria metafísica do caos da alma, em quase segundos, no trajeto rápido entre o chuveiro, a toalha e o quarto de dormir e vestir, que consistia em anotações sumárias e a tese de que um homem de bom humor não recorre ao horóscopo. E as vibrações lunares serviriam apenas para as grávidas e para os cortes de cabelo.
Sentia um frio terrível de bater os dentes. Vestiu o primeiro casaco que descobriu vazado por traças. Não encontrou as meias limpas nem a camiseta branca para colocar por baixo da camisa de trabalho. Os punhos puídos da derradeira camisa azul, a única passada e lavada disponível, lhe tiraram as últimas gotas de estima.
Neste dia desceu as escadas a pé. Para evitar qualquer vizinho, má sorte, fofoca ou bom dia. Rompeu o tendão e caiu estatelado no lixo mal fechado do quinto andar. No jornal amarrotado a página astral: “Não vocifere com o destino.”. Riu. O ridículo trouxe o humor, trotando belo cavalo e trajando armadura. E pelo menos o zelador pode ouvir anedotas...
2008. junho.
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pensamentos tolos
segunda-feira, 16 de junho de 2008
Bobinha... mas gosto
Aos doze de junho
Ao me deitar
Queria teu colo
E no teu colo
Deitar.
Ao me levantar
Queria teus afagos
E no teu afago
Levantar.
Ao que me deito e levanto
Querendo teu colo e afagos
E neles
Ficar.
sexta-feira, 6 de junho de 2008
Das cousas que não se mensuram pela distância
Releituras
Olhava fixa e intensamente para a janela. Ouvia os pingos finos da chuva fria encontrarem-se com o vidro. Gostava daquele barulho. Acho, que no fundo da alma, todos gostamos. Não percebera o passar do tempo. Alguns minutos, talvez. Ou hora. No colo, outro bom livro de Machado. Nos pensamentos distantes, nem a chuva nem os olhos de ressaca.
Pensava naqueles dias de outono, das flores vermelhas e do pouco frio, mas o suficiente para a boa coberta, o bom vinho, a boa preguiça e o bom cafuné. Era ela que desfilava pela casa, ainda com as roupas dele, arrumando o jornal, colocando a mesa em ordem e preparando o café, entendendo pouco a pouco que ele gostava mais de café do que de leite, mais de manteiga do que do requeijão, mais água e sal do que bolo de chocolate. E descobria assim sem perguntar, desses jeitos que não invadem, nem perturbam. Era com esses pensamentos que ele se divertia.
Arrumou a coberta e o livro. O frio parecia aumentar, lá fora. Assim como a chuva. Absorto, a encontrou outra vez. A memória naquele mesmo sofá, cabelos soltos, ares de moça, quereres de adolescentes, sabores de fruta e chocolate, perfume de corpos. Estranhou aquela riqueza de texturas, sorriu. Apertou as mãos ao livro. Puxou a coberta, queria mais calor. E com esses pensamentos foi o tempo, anoitecendo tudo: janela, sala, livro, cheiros. Com esses pensamentos todos, experimentou o último gole do copo, o mais longo e saboroso, o malte quase sem o gosto do gelo.
A chuva parara. A luz da lua, viva, intensa, branca, invade a sala. Quase um convite para outra dança, entrelaçar pernas, outros encantos. Um frio que já era calor. Ao toque de um controle remoto, a música continuava. Percebeu, então, que era saudade.
Nem foi preciso olhar para o lado, ela acordara e lhe fazia outro chamego, ainda com as roupas dele, já espalhadas pelo chão.
Junho.08
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vinho quente
segunda-feira, 2 de junho de 2008
Vivendo e aprendendo a jogar...
Outra da série dos times brasileiros e seus torcedores. Eu gosto destes textos. Gosto das releituras. Gosto de escrever tais estórias. Com "e"... E que poderiam ser histórias também...
Publicado originalmente n' Os Bolonistas:
http://osbolonistas.zip.net/arch2007-06-01_2007-06-30.html#2007_06-26_18_18_09-2402205-25
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O Mais Belo dos Botafogos
Bolonistas que queriam ler sobre as outras histórias...
Havia um clima de indisfarçável consternação. Depois de tantos e tantos anos, tantos e tantos jogos, o Botafogo poderia subir para a Série B do Brasileirão. Mas falhou, na reta final. E o pior, falhou na hora que não poderia. O time de João Pessoa amargaria mais um ano de jogos esquecidos.
E o pior é que este fato gerou inusitada e alarmante situação na família Goitacás: Michel não saía mais do quarto, desde o domingo.
Todos conhecem ao menos um Goitacás, lá da Paraíba. Eles são famosos, pois a família se especializou em nomear seus herdeiros com os nomes dos craques da seleção francesa de futebol, muito antes, mas muito antes, do canarinho virar saco de pancada e freguês de carteirinha dos “bleus”. Digo isso, pois todos viram ao menos uma vez nessas matérias de programas de esportes as incríveis façanhas da família Goitacás.
O velho e bom Domenico Salvador Goitacás era jornalista e foi escalado pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro para cobrir o Mundial de 30, no Uruguai. Em feliz dia, Dom Domenico viu, estupefato, a defesa do arqueiro Tephot, da França, numa penalidade cobrada por um atacante chileno. Uma defesa de penalidade em pleno Mundial de Seleções. Algo memorável. E Domenico resolveu que seu primeiro filho se chamaria Thepot Goitacás. E Teté nasceu em 32, sorridente e confiante, ainda no Rio de Janeiro.
De lá para cá várias gerações de Goitacás perfilam os gramados da vida. A família voltou para a Paraíba, ainda nos anos 40. Adotou o Botafogo como time de coração, embora uma ala da família, com nomes de mortais, morasse em Campina Grande e adotasse o Treze. Em 59 nasceu Fontaine Goitacás. Em 61, Kopa. E o Botafogo, o “Belo” da Paraíba foi conquistando títulos e títulos regionais.
O fato é que a campanha do Botafogo fora irrepreensível. Mas no quadrangular final perdeu do Santo André, em pleno Almeidão, e empatou com o Ituano, num inimaginável 4x4, na última rodada. Michel, irmão de Tigana e Rochetau, primo de Amorros, desde o empate se prostrou na cama. Não havia alma que lhe tirasse do quarto. Benzedeira, padre, professor de música e até a dona da quitanda já haviam tentado. Em vão.
Os vizinhos começavam a espalhar boato: “Narcóticos”. Os familiares de Campina Grande, fofoca: “Descobriu que ela o trai.”. Foi aí que o pequeno Zizou, com seus cinco anos incompletos, mandou a certeira: “Paiê... será que se fosse o Treze...”. Michel percebeu o perigo e o ridículo. Abraçou o filho, foi para a praia jogar bola e, por via das dúvidas, comprou mais uma camisa com a estrela vermelha para o menino.
2007.junho, 26.
sexta-feira, 30 de maio de 2008
Letras do Alfabeto
Querelar
Querer
Quero.
Que coisa?
Querida,
Quereres.
Queijo?
Queixada?
Queixo?
Querubim.
Que é isso???
Querelas, meu bem. Com quê.
2003.
terça-feira, 27 de maio de 2008
Cordão no pescoço
Tic tac tic tac tic....
Desde menino. Os mesmos passos. Os do pai e os do avô. A loja, a pequena loja de miudezas. Cinco e meia, e acordava. Cinco e quarenta, o banho quente. O vapor no banheiro, outras partículas, mas os desenhos eram os de sempre. Os da toalha, azuis. Sempre, com os relógios sincronizados matematicamente, o da parede da sala e o da geladeira, marcando inapeláveis seis, os ponteiros cravados no seis, era o cheiro do café, sempre austero, forte, sem açúcar ou adoçante. E o pão com queijo. E a banana, amassada e com aveia. Os pratos marcados com o tempo e os arranhões dos mesmos garfos.
A mesma falha no segundo degrau da escada. Os mesmos pedidos da mãe, que também foram da avó, de pegar a velha blusa para os casos de frio. Não importava o sol, o bafo, o vento. As mesmas considerações sobre o tempo, sobre a vida, sobre os vizinhos. A mesma pausa para conversar com o dono da padaria. A mesma bicicleta que levava o pão. O copo de leite.
O portão da loja. A mesmíssima fechadura com o eterno defeito na terceira tranca. A velha tramela e o ranger de sempre, no imenso balcão de madeira. O mesmo tilintar da máquina de contar. Os mesmos cuidados com o pó, o mancebo, as vassouras, os nós dos fios de lã. E o rádio, na estação habitual, a música cotidiana que informa sobre a cidade.
A freguesia. A pausa para o café coado. O imenso baú que nunca era vendido, mas estava lá, com o preço do avô. A cantilena da pechincha. O fiado lascado. As moedas. A linda apontadora do jogo do bicho, bisneta da primeira funcionária da lotérica ao lado. A mesma aposta de cinco mil réis no Galo, na dezena.
O almoço comercial no bar ao lado. A conta na fatura. Uma compensando a outra, a panela nova pelo tutu. De feijão, nas segundas feiras. A pequena sesta no quarto no fundo da loja. O hábito da cigarrilha e do vermute. Esperar pelo tempo, que passa. Corriqueiro.
Naquele dia, não. Ao fechar o portão da loja, dezoito badaladas do relógio da matriz, o assalto derradeiro. O coração. E mais uma estatística. Rotineira.
2008. maio.
Desde menino. Os mesmos passos. Os do pai e os do avô. A loja, a pequena loja de miudezas. Cinco e meia, e acordava. Cinco e quarenta, o banho quente. O vapor no banheiro, outras partículas, mas os desenhos eram os de sempre. Os da toalha, azuis. Sempre, com os relógios sincronizados matematicamente, o da parede da sala e o da geladeira, marcando inapeláveis seis, os ponteiros cravados no seis, era o cheiro do café, sempre austero, forte, sem açúcar ou adoçante. E o pão com queijo. E a banana, amassada e com aveia. Os pratos marcados com o tempo e os arranhões dos mesmos garfos.
A mesma falha no segundo degrau da escada. Os mesmos pedidos da mãe, que também foram da avó, de pegar a velha blusa para os casos de frio. Não importava o sol, o bafo, o vento. As mesmas considerações sobre o tempo, sobre a vida, sobre os vizinhos. A mesma pausa para conversar com o dono da padaria. A mesma bicicleta que levava o pão. O copo de leite.
O portão da loja. A mesmíssima fechadura com o eterno defeito na terceira tranca. A velha tramela e o ranger de sempre, no imenso balcão de madeira. O mesmo tilintar da máquina de contar. Os mesmos cuidados com o pó, o mancebo, as vassouras, os nós dos fios de lã. E o rádio, na estação habitual, a música cotidiana que informa sobre a cidade.
A freguesia. A pausa para o café coado. O imenso baú que nunca era vendido, mas estava lá, com o preço do avô. A cantilena da pechincha. O fiado lascado. As moedas. A linda apontadora do jogo do bicho, bisneta da primeira funcionária da lotérica ao lado. A mesma aposta de cinco mil réis no Galo, na dezena.
O almoço comercial no bar ao lado. A conta na fatura. Uma compensando a outra, a panela nova pelo tutu. De feijão, nas segundas feiras. A pequena sesta no quarto no fundo da loja. O hábito da cigarrilha e do vermute. Esperar pelo tempo, que passa. Corriqueiro.
Naquele dia, não. Ao fechar o portão da loja, dezoito badaladas do relógio da matriz, o assalto derradeiro. O coração. E mais uma estatística. Rotineira.
2008. maio.
terça-feira, 20 de maio de 2008
Contos de Uma Fada Pós Moderna
Próxima Parada...
Seria tolice não esperar por ela. Seria uma burrice homérica, daquelas sem par. Ainda que o último ônibus partisse dali a cinco minutos. Ainda que depois do último, só na madrugada alta com quase sol. De outro dia. Mas ele tinha a estranha e irremediável convicção que esperar por ela seria a única opção racional. A opção para ser feliz.
Conheceram-se e combinaram o encontro daqueles jeitos improváveis. Ela estava comprando bolachas doces numa dessas lojas de confeitos que se espalham pelo centro da cidade. Ele escorregou, de forma patética, na porta do estabelecimento. As causas risíveis aproximam as pessoas.
Ela o ajudou. Pagou o café. E durante o café uma vontade louca de lascar um beijo naquela boca ressecada pelo frio. Fez. E dali para os corpos se atracarem foi um passo. Doze, na verdade. À distância para o motelzinho barato e com estrados barulhentos. Fizeram muito barulho. E fizeram tudo. Mesmo. Só de relembrar, ruborizou.
E combinaram, apressados, indo embora do “randevu”, se encontrarem na rodoviária. Descobriram a estranha coincidência de não terem destino certo, além da intensa vontade de serem felizes. E ele tinha um bilhete para longe, entrevista e emprego certo, para finalmente ganhar independência. E ela, a intensidade exata. Daria tempo de conversar, se conhecer, trocar experiências, beijos, carícias e os lençóis. Parecia a única coisa correta a se fazer. A única. E a certeza dele se firmava em todas as lembranças dos lábios e dos arranhões que ainda doíam nas costas. E a certeza da alma, devorada e apaixonada.
O último chamado. O bilhete na mão. Motorista na espera. Rostos ansiosos e com sono dentro do coletivo, suplicando para seguir viagem. O último. Os minutos eternos. A rodoviária quase vazia. Quase sem luz. Escura. Olhou o bilhete pela última vez. O entregou ao diligente motorista. Acordaria, às seis da manhã, quase chegando ao destino incerto.
2008, maio.
Seria tolice não esperar por ela. Seria uma burrice homérica, daquelas sem par. Ainda que o último ônibus partisse dali a cinco minutos. Ainda que depois do último, só na madrugada alta com quase sol. De outro dia. Mas ele tinha a estranha e irremediável convicção que esperar por ela seria a única opção racional. A opção para ser feliz.
Conheceram-se e combinaram o encontro daqueles jeitos improváveis. Ela estava comprando bolachas doces numa dessas lojas de confeitos que se espalham pelo centro da cidade. Ele escorregou, de forma patética, na porta do estabelecimento. As causas risíveis aproximam as pessoas.
Ela o ajudou. Pagou o café. E durante o café uma vontade louca de lascar um beijo naquela boca ressecada pelo frio. Fez. E dali para os corpos se atracarem foi um passo. Doze, na verdade. À distância para o motelzinho barato e com estrados barulhentos. Fizeram muito barulho. E fizeram tudo. Mesmo. Só de relembrar, ruborizou.
E combinaram, apressados, indo embora do “randevu”, se encontrarem na rodoviária. Descobriram a estranha coincidência de não terem destino certo, além da intensa vontade de serem felizes. E ele tinha um bilhete para longe, entrevista e emprego certo, para finalmente ganhar independência. E ela, a intensidade exata. Daria tempo de conversar, se conhecer, trocar experiências, beijos, carícias e os lençóis. Parecia a única coisa correta a se fazer. A única. E a certeza dele se firmava em todas as lembranças dos lábios e dos arranhões que ainda doíam nas costas. E a certeza da alma, devorada e apaixonada.
O último chamado. O bilhete na mão. Motorista na espera. Rostos ansiosos e com sono dentro do coletivo, suplicando para seguir viagem. O último. Os minutos eternos. A rodoviária quase vazia. Quase sem luz. Escura. Olhou o bilhete pela última vez. O entregou ao diligente motorista. Acordaria, às seis da manhã, quase chegando ao destino incerto.
2008, maio.
sexta-feira, 16 de maio de 2008
Coisas do Brasil - Blogagem Coletiva
Quem me convidou foi o Rubens.
"Escrever sobre o Brasil". A proposta é da Andréa Mota, do blog "Eu leio o mundo assim".
Topei. Sem saber direito o que era.
Mas uma produção coletiva sempre me atrai.
A tarefa é escrever sobre a cidade em que nascemos. Nasci em SP. Na gema. Da gema.
Resolvi manter o padrão dos textos do "Quodores". Uma crônica. Não necessariamente na primeira pessoa. Ficção, sem ser necessariamente irreal. Real, com o compromisso com os mais tolos devaneios.
Visitem o blog da Andréa e conheçam os outros "blogueiros" e os outros textos.
http://leioomundoassim.blogspot.com/
O texto saiu assim.
Gostei. Da "blogagem" e da experiência.____________________________________
Um chope e dois pastéis, por favor
Acordou cedo. Bem cedo. A cidade que nunca dorme, dormia. Cinzenta, ainda. A poluição, talvez. São milhões de carros enfumaçando tudo. Mas era a névoa típica de uma cidade que já foi da garoa. Nenhuma outra cidade tem aquelas cores. Uma estranha, rocambolesca e química mistura de cores. O sol começa a aparecer. Os primeiros raios. Vermelhos. De vida. E paixão.
Desceu apressado, pela escada. Os elevadores estavam em manutenção. Há prédios para todos os tipos de estudantes de arquitetura na desvairada cidade de Mário de Andrade. Prédios e mais prédios. Arranhas céus típicos da Malásia. Pequenos prédios de três andares de um tempo em que se dizia bom dia.
Na pressa, quase cai escada abaixo. Quase. Ainda bem que não caiu. Com o plano de saúde, estava em débito. Os melhores centros de medicina da América Latina e hospitais de primeiro mundo se encontram nos índices com um sistema deteriorado de saúde pública, péssima gestão, endemia de qualquer administração.
Disse “bom dia” ao zelador. Na retribuição do gesto, o primeiro sorriso numa cidade que quase não sorri. Sisuda, a vizinha do 23 passeava com o cachorro. Era linda. Mas descuidada, a vizinha. E cuidava da rua, levando uma pá para recolher o cocô do cachorro. Ainda bem. Há bairros de classe média na maior cidade do país que as calçadas estão minadas com ex pertences dos animais domésticos. Há poucos espaços realmente públicos na cidade.
Na padaria, a combinação típica das manhãs na cidade que acolheu Tom Zé: O pão francês na chapa, com manteiga, e a média, o codinome clássico do café com leite. Todos apressados devorando os lanches e os cafés, quentes, fortes. “Um carioca”, foi o que pediu o senhor de bigodes junto ao balcão. Em terras paulistas, o “carioca” é o café mais fraco. Mais uma contradição da velha senhora.
Ouvia no carro Geraldo Filme e Adoniran. As canções falavam da cidade, das antigas senzalas e das novas segregações. Inevitável repensar tudo, num trânsito caótico e maluco, sem preferenciais. Há uma rádio na antiga província Piratininga que simplesmente “toca” notícias do trânsito o dia todo. Vinte e quatro horas, de carros e buzinas.
Fez os planos para a noite. Cinemas, cineclubes, boates, puteiros, teatros, botecos. Tudo há na capital do progresso. E para todos os tipos de dinheiro. Decidiu pela Praça Roosevelt, com teatros, um “teatro bar” do Grupo Parlapatões e um antigo cineclube. Quase no centro da cidade, lá tem um boteco ótimo, onde Elis Regina teria feito sua primeira aparição na terra de Osvald: “Papo, pinga e petisco”. Decidiu que antes andaria a pé pelo centro velho, do Theatro Mvnicipal imponente de Ramos de Azevedo ao moderno Copam, de Oscar. Evidentemente passaria pela Galeria do Rock e compraria algum disco, sim LP, bolacha, vinil, em alguma das lojas. E tinha até o que comprar: Rita Lee, dos primórdios.
E já tinha planos para a madrugada, um churros tradicional e espanhol numa espécie de garagem na Mooca, na Rua Ana Néri, que abre no horário e para os boêmios: A partir das três da manhã. E que fecha as dez da matina. Seria tranqüilo, pois o Juventus jogaria no mais simpático e acolhedor estádio da cidade, na Rua Javari, lá pelas onze horas. Da outra manhã. Não dormiria? Nem a cidade.
Nas divagações e devaneios, nos milhares de paradoxos e esquinas, relembrou que os amigos viriam do interior para a Parada Gay, um dos maiores orgulhos da cidade. E olhou para os missionários de alguma organização mariana que faziam abaixo assinado desfavorável ao aborto. Os choques de uma cidade conservadora e plural, autoritária e libertária, cretina e emancipadora. Enfim, a metrópole.
Pensou no almoço, deliciosamente, na Cantina do Magrão, lá no Ipiranga. E já tinha telefonado para a namorada, para jantar um sushi na Liberdade. Iriam passear de metrô. Do Museu da Língua Portuguesa, da roda de chorinho aos sábados na Loja Contemporânea na General Osório e terminando sorvendo o elixir: chope, no Bar do Léo. Rua Aurora.
A cidade de corintianos, palmeirenses, são paulinos e até dos flamenguistas, cruzeirenses, colorados, tricolores da Bahia, Confiança do Sergipe. Da Lusa. Do Boca, do Napoli e do Atlético, de Madri. A cosmopolita mais provinciana das cidadelas, da Avenida Paulista, das Marginais, da Berrini, do Largo da Penha e das casas dos militares, em Santana.
Lembrou que estava atrasado para o trabalho. Pontualidade. Parou por instantes os planos de lazer... “Bom dia”. Ninguém retribuiu, ainda assim sorriu. O relógio dizia que ainda não eram nove da manhã.
2008. Maio, 16.
lista para a despensa
blogagem coletiva,
crônicas da cidade
quinta-feira, 15 de maio de 2008
Etmologias lisérgicas I
.
Zabrisque lelê, denotasse
Oriundo desdém, linguagem redundante
Ou brado guerreiro, um zunido
Diáspora delinqüente chinfrim
Zabrisque lelê, conativo
Pinimba imaginativa,
Uma colher de pau, madeira sem lei
Zabrisque, zabrisquê!!!!
Oxalá alguém compreenda esse o lê lê....
terça-feira, 13 de maio de 2008
Reflexões sobre o tricampeonato
Publicado um dia no Os Bolonistas...
http://osbolonistas.zip.net/arch2005-12-01_2005-12-31.html#2005_12-21_18_37_13-2402205-25
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Confissões da Segunda Paternidade
Perguntas e Respostas
"Ô Paiê..... Ô Paiê...."
Olhos curiosos. Eles falam pelos olhos, quase sempre. Olhares atentos e olhando a tudo e ao todo. E tudo acaba sendo motivo de pergunta, de porquês e de inevitáveis embaraços, porque explicar as razões de tal coisa ser amarela e não verde é algo que sequer os físicos sabem definir.
"Ô Paiê...."
Estávamos na quadra do prédio. Acompanhados de uma simpática bola de futebol do Tricolor, aquela altura já tricampeão do mundo. Torço muito para que a bola de futebol seja para ele algo mais íntimo do que é para mim. Eu venero a bola, idolatro. Mas a chamo de Vossa Excelência. Enfim, eles que sejam bons amigos. Tinha chovido, bastante, na noite anterior. A quadra tinha poças consideráveis e foi inevitável que pai e filho ficassem descalços brincando de escorregar pelo limo que se tornou a quadra. Eu tentei segurá-lo algumas vezes, noutras ele caiu. E ria. "Porque cai? Porque o Antônio cai, papai?" "Porque a quadra está escorregadia por causa da chuva."
"Ô Paiê... Paiiiiiiiiêêê!!!"
Inevitáveis algumas perguntas, e acho que ele de fato queria muito boas respostas, para as novidades dos últimos dias. "Pai, porque o Leonel não fica de pé?". "Porque o Leonel não fala?". "Porque a mamãe fica com o Leonel?" Fui respondendo, uma a uma, as questões. As respostas seriam convincentes se a velocidade das perguntas fosse um pouquinho menor. E os olhos... falando, gesticulando. Perguntando. Entre uma risada e outra, um escorregão a mais, um chute na bola e um grito de "tricampeão" que deixou o pai totalmente imenso parecendo balão que ia explodir.
"Ô Paiê...."
Ops... Num átimo ele correu para dar outro chute na pelota e bum... rastabum no chão, de costas, com os pés erguidos, tombo de cinema. A camiseta branca ficou escura. E chorou. Saí correndo para acudir. "Filho, acontece, não foi nada!" Um abraço e os soluços continuavam, foi só o susto. "Pai, papai, porque o Antônio caiu?" "Ora, filho, o Marco Antônio correu e escorregou no chão molhado, isso acontece." "Pai, mas porque caiu?" "Filho, o papai quando tinha a sua idade também caía bastante." "E quem levantava o papai?" "O seu avô filho, o vô Nilton, que é o pai do papai."
Enquanto isso, Leonel está ninando no colo da mãe. Feliz da vida. O danado já sorri e os olhos já sabem falar... o irmão entra em casa: "Mamãe... Mamãe... o papai levantou o Antônio, disse filho não foi nada, isso acontece." Acontece, filho. Acontece sempre. Pergunte para a Vó Lena.
2005. dezembro, 12.
quinta-feira, 8 de maio de 2008
Bons Comercias Grudam
Frio, daqueles.
Coberta, cobertor, meia, duas camisetas.
Frio, daqueles.
Edredon. Gigante. Tudo zipado.
Frio, daqueles.
"Quem é..."
"É o frio..."
"Eu não deixo você entrar..."
"Esta música era de um reclame de televisão e de rádio?"
"Putz... mas tá frio."
"Ué... o edredon funcionou tão bem noutro dia. Será que está tão frio?".
O edredon, sem titubeios, respondeu. Na lata:
"Era ela".
Concordou. E voltou a sonhar.
maio.08
segunda-feira, 5 de maio de 2008
De casórios e de casamentos
Originalmente, nos Bolonistas.
http://osbolonistas.zip.net/arch2007-04-01_2007-04-30.html#2007_04-28_01_20_59-2402205-25
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Bolonistas dos Campeonatos Regionais em fases decisivas...
Quem não se emociona com Altemar Dutra não é pessoa confiável. Simples, assim. Esta era a opinião central de Cróif sobre o mundo dos homens. Não, não errei. Cróif nasceu em 1974, sagitariano, batizado assim em homenagem ao maior jogador de futebol da história da Holanda. Aliás, um dos maiores futebolistas do globo, um assombro. Evidentemente que houve erro na grafia, no cartório. Mas este fato é de pouco relevo.
Cróif nasceu e em pouco tempo revelou sua natureza dócil. Era, desde menino, um cara legal. Supimpa. Boa gente. E galante. Com cinco anos já roubara flores para presentear a vizinha, de sete. Da vitrola do pai conheceu clássicos do repertório romântico. E foi e cresceu desse jeito. As suas paixões eram três, além da música: Filme do 007, mulatas e a Associação Desportiva Confiança. Esta última lhe tirava o sono.
Me contaram um dia, nesses dias de boteco, que Cróif era daqueles lunáticos, sabedores dos dezesseis títulos da Confiança no Campeonato Sergipano de Futebol, das melhores campanhas do time no Nacional e que somente vestia azul ou branco. Era febril. Mas a febre não o impedia de ser um cara normal, exceto no futebol.
Pois bem, o fato curioso foi que em um dezembro qualquer Cróif chegou cabisbaixo, macambúzio e ranheta e sentou-se na mesma mesa cinco do nosso bar predileto, seja ele qual for: "Vocês não sabem o que eu descobri...". Confesso, temi. Só podia ser por causa dela...
"Ela vai se casar." Senti a primeira pancada. No estômago. "Ela vai se casar e vai ter festa." Aquilo roeu minhas vísceras. O cara ia desmontar e ia ser aquela cena no boteco. "Ela vai se casar, vai ter festa e porra... eu vou ser o padrinho!!!". Senti náusea. Vertigem daquelas. E, batata, o cara desandou a chorar, daqueles choros que contaminam, que enlouquecem, que arrebentam.
Impossível deixar de divagar. Bar é local de história triste? Sacanagem. Juro, vou me regenerar e parar de beber. E nesse pensamento fortuito vocês nem desconfiam, nem sequer imaginam o que aconteceu. E posso dizer, testemunhei. Lá pelas tantas, umas quinze tulipas, duas doses de "steiéguener" e muita choradeira, música de corno e impropérios múltiplos sobre os nubentes, entra uma mulata escultural, anormalmente bela e ébria, vestida dos pés a cabeça com o segundo uniforme da Confiança, um branco sublime, bestial e estonteante:
"Eu não acredito, você vai deixar eu me casar com ele, seu tapado!!!!".
2007. abril. 28.
terça-feira, 29 de abril de 2008
Canto dos Olhos
Um olhar. O primeiro sorriso, roubado. Mas saboreado.
Outro, olhar. Os segundo e terceiro sorrisos, mútuos. E degustados.
Mais olhares. Múltiplos, silenciosos e cúmplices. Assim como os sorrisos. E...
Olhos cerrados, fechados. Entre o tato e o olfato, paladares.
Sem sorrisos. Mas os lábios...
Beijo. E saíram apressados.
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breves cotidianas,
vinho quente
sexta-feira, 25 de abril de 2008
Escondidos no Sotão
Eram dois. Não são mais. Paulo e Eugênio. O telefone toca. Nada de respostas. Só perguntas. E uma profunda dor. Inexplicável. E nem tanto.
Nunca soube diferenciar posse de amor. Ou mesmo de paixão. Era um sentimento tão forte que não conseguia encontrar forças para discernir. Com toda a sinceridade possível nesses sentimentos, sempre achou que fosse amor. Ou paixão. Nunca posse. E não tinha convicção. Nem certeza.
Assim, todo ciúme sentido era explicado pelos sentimentos profundos, e nobres, de paixão ou amor. Sempre encontrava nobreza nos atos aparentemente desconectados de razão. E os bolsos vasculhados, os papéis remexidos, as certezas das dúvidas e as incertezas das explicações. Mas no fundo, havia certo regojizo. Era paixão, e a imagem de um terceiro justificava todos os atos.
E sentia profunda derrisão pelos próprios sentimentos. Sempre havia a coordenada consideração teórica sobre as virtudes e sobre as verdades. E as mentiras. E quase sempre era a mentira que fundava as preocupações extremadas. Quase nunca se interessou pelas verdades.
Enfim, houve o dia da revelação. E como todos os monstros de todos os pensamentos mais obscuros saíssem na mesmíssima hora das masmorras chorou e destilou o ódio e o veneno acumulados. Sentia estranho prazer naquele sofrimento em que responsabilizava o outro pelos infortúnios da alma e do corpo. Na trilha do correio violado, as provas. Na trilha das conversas travadas, a confissão.
Esqueceu-se, porém, do outro. E na busca sôfrega para exportar o sofrimento, afinal não era justo sofrer sozinho, fez o que considerou justo. Esqueceu-se, também, da conta telefônica, aberta sobre a mesa. Na noite anterior ao dia da revelação, os números discados e expressos na conta de papel denunciavam o trote. E ali acabou tudo, o outro entendeu que era posse. Não quis participar do jogo. Foi embora. Sem virtudes. Mas sem dúvidas.
quarta-feira, 23 de abril de 2008
Terremotos e Tolices
A realidade de cada um
Era uma vez....A realidade.
O que esperamos da realidade, senão que vivamos?
A vida é uma só.
Amanhã não tem mais.
A vida é curta.
Carpe diem.
Viva.
Será somente viver?
A realidade, infelizmente, não é uma só.
Amanhã, existe um outro dia.
A realidade é hereditária.
Coma bem.
(se puder)
Sobreviva.
Era uma vez... Um príncipe encantado.
A realidade é somente fruto da imaginação de alguém.
Diga qual o seu nome e o concreto pode subitamente se abstrair.
Se a sua razão é real, de certo que o alvo predileto é o sonho.
Pesadelo de uma noite mal dormida.
Ligação de pensamentos perdidos, virtualmente comprobatório.
A relação do real com o irreal é a somatória de utopias, de expectativas, de egoísmos, de mentiras e de verdades.
Resulta da análise minuciosa do cotidiano.
A relação do real com o irreal fica acima da ciência exata, é passional demais para ser cientificamente constatada.
E o sapo coaxou.
terça-feira, 15 de abril de 2008
Entre sonhos, muitos e assim só
Ainda não entendia bem. Mas o fato é que elefantes atravessavam a sala carregando carambolas enquanto uma perua Rural laranja e branca roncava no quintal. E o quintal era de uma casa, por vezes. Em outras, era a varanda. Do meu apartamento. Só que maior.
Ao fundo algo como uma música distante. E inacreditável, naquele circo todo, a trilha parecia ser Piazola. Ouço vozes desconexas, informando que havia chuva e possibilidade de frio. “Seis horas e quarenta e dois minutos”.
Entendi tudo. Era o despertador. Os elefantes, as carambolas e a Rural eram parte de algum sonho invariavelmente desconexo. Ainda poderia ficar mais um pouco na cama. Aguardar o próximo despertar do rádio relógio. Mas a chuva e o barulho dos pingos na janela tiveram efeito no organismo. Não dava mais para segurar. Era xixi.
Levantei. Tocava um chorinho, de Pixinguinha. Raras vezes um despertar poderia ser tão feliz: Piazola e Pixinguinha. Talvez estas felicidades me renovassem os humores. Acordar cedo não é das tarefas mais gratas. Enfim, me lembrei dos compromissos do dia. O jornal. O mamão. O café, amargo. Preciso comprar mais pó. Ou o granulado.
No banho refiz os planos do dia. Quem sabe a sorte do tango e do choro me levassem a ter um dia mais ameno, alguma resposta positiva daquela chance boa de novo emprego. Ou novo rumo. Dei risada, dos elefantes e das carambolas. Quem entende o mundo do lado de lá? Do cérebro.
A gravata combinando. O maldito do cinto desgastado. Preciso comprar outro. E lembrar da graxa, no sapato. A chuva insistia. Tracei os planos para os melhores caminhos para fugir do inevitável trânsito. Outra olhadela no jornal, os quadrinhos. O Calvin. Outro sorriso. Uma boa manhã. Faltou só o pãozinho quente, com manteiga derretendo. Amanhã acordo mais cedo e vou à padaria. Planos.
O guarda chuva. Teria que andar pelo centro da cidade. Melhor levar o guarda chuva grande. Conjecturas. As chaves. A chave do carro. Mais um dia. Ao esperar o elevador, um assovio. “Chega de Saudade”. O dia até que começara bem.
O portão da garagem se abre, lentamente. O primeiro ronco do motor do carro. O rádio. Lembrei-me da Rural. Novos sorrisos de planos futuros. Com coisas passadas.
Tudo parecia tranqüilo, para um dia de chuva. As ruas desertas. De carros. E de gente. Sem fila nos pontos de ônibus. Um dia tranqüilo. “I`ve got you under my skin”. Sinatra, inconfundível. A certeza que o dia seria perfeito.
Ao entrar na avenida percebi finalmente que estava sozinho. O telefone celular deixara em casa. A chuva torrencial impediria qualquer ser vivente de sair incólume do carro. Olhei para os lados e percebi o inevitável. Ficaria naquela avenida para sempre. Para todo o sempre. O semáforo piscando em amarelo denunciava tudo. Trezentos e doze quilômetros de congestionamento na cidade, informações da Companhia de Tráfego. E o mostrador do combustível alertava para a reserva. As carambolas seriam doces?
2008.abril.
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terça-feira, 8 de abril de 2008
Buracos e Rezas
.
Super faturamento.
Quem foi que inventou o pecado?
Deus criou o homem
Imagem e semblante.
E quem criou Deus?
Indagações perigosas. O mundo é assim.
Tens dó de ti, temos dó de nós, temos Deus a rogar.
Oremos.
A toca do homem é um buraco de avestruz.
Ou de Ema. Uma dádiva divina.
Quem criou a criação?
A Ema, que depois fugiu para o Pantanal.
2004.
Super faturamento.
Quem foi que inventou o pecado?
Deus criou o homem
Imagem e semblante.
E quem criou Deus?
Indagações perigosas. O mundo é assim.
Tens dó de ti, temos dó de nós, temos Deus a rogar.
Oremos.
A toca do homem é um buraco de avestruz.
Ou de Ema. Uma dádiva divina.
Quem criou a criação?
A Ema, que depois fugiu para o Pantanal.
2004.
segunda-feira, 7 de abril de 2008
Vermutes e aguardentes
João e Maria
E a cidade crescia por todos os lados. A praça e o viaduto. O colégio, um outro prédio. Mutatis mutanti. A cidade continuava seu caminho. Mas era uma boa companheira de desilusões. Imaginem o quanto que essa alma sofreu quando lhe impuseram o Viaduto Costa e Silva? Aquela coisa bizarra, feia e estúpida que liga a região central ao local de trabalho do prefeito da ocasião... e em nome do progresso! O progresso era uma espécie de doença, urbanismo mal resolvido. A cidade sofreu, mas calada ficou.
A vantagem, ou enorme desvantagem, da grande cidade é essa resignação que ela transmite. Sem um rugido de dor, sem uma feroz virada de mesa, ela acolhe o viaduto e o transforma em moradia, em recanto para muitos. E as pessoas podem andar por aí, vagando sem se cumprimentar, sem se notar. A cidade grande oferece abrigo e você pode transitar com suas desilusões, sem incomodar quase ninguém e esperando ser incomodado só vez em quando...
Waldir bebera tanto que ia caindo pelas ruas. Esbarrava em orelhões e chutava latas. Marina, com ar de superioridade e completamente embriagada ralhava, tudo sem o menor sentido. A padaria acabara de abrir. Média requintada às quatro da manhã? Será que é de ontem? Uma singela coxinha de frango adormecia nas estufas e um cheirinho de fritura. Pãozinho na chapa. Moacir, o único com resquícios de sobriedade pediu um gole de fernet, não queria chegar em casa de cara limpa. Rosinha riu e Carlão só fazia rir, e ria.
Os ônibus já circulavam com alguma freqüência. Hora de ir para casa. Salazar, com um casaco fino de náilon, saiu correndo pela rua. No que Rui e Diana logo o seguiram. Cachorro quente e suco grátis, de uva ou morango, aceitam-se passes. Uma névoa fina cobre a cidade. Uma cantoria tomava fôlego e o Brás e o Tulinho se abraçaram e começaram a chorar.
Plantar verduras pode ser um grande negócio. O cinturão verde é próximo da capital e pode-se vender um pouco mais no verão. Um passarinho pia. Um carro buzina, quase atropelou Marquinho. Lucinha escorregou e todos riram. Algumas conversas desconexas.
A cidade, um imenso guarda chuva com cabo ornado com ouro.
sábado, 5 de abril de 2008
Zas que zastras também
Quem ouviu o tamborim?
Digo isto prá repetir depois
Quem ouviu o tamborim?
Sim, o tamborim tamborila
Meus ouvidos num baticum lelê
Minhas cadeiras sempre descadeirar
Quem ouviu o tamborim?
Digo isto prá repetir depois
Quem ouviu o tamborim?
Viva! Viva o tamborim. Toque, toque tambarim
Quem ouviu, hein?
2003.
sexta-feira, 4 de abril de 2008
Outra, dos xodós.
Original, no Bolonistas:
http://osbolonistas.zip.net/arch2007-04-01_2007-04-30.html#2007_04-16_23_32_29-2402205-25
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Bolonistas céticos e os outros...
Todos reconhecem a grandiosidade das histórias de botecos. De certa forma e modo, as pequenas delícias do chope só se completam com as belezas das histórias anônimas, contadas e percebidas na mesa ao lado. Quem nunca "pescoçou" uma conversa alheia em boteco mente. Todos mentimos.
Lá pelas tantas era tão nítida a pérola que me pareciam os detalhes mais um filme do que novela, mais verdade que mentira, mais sóbria do que ébria. Os fatos relatados eram de amor febril e contrariado. Poucas vezes vi um silêncio tão grande entre as mesas do Bella Rubia. Repentinamente todos auscultavam a pérola. Alguns tinham lágrimas.
Tudo começou, sempre há um começo, numa dessas tardes sem compromisso que acabam por acabar em uma mesa, alguns copos e alguns acepipes. Pelo que notei, era um viúvo. Tinha lá os seus sessenta, menos que setenta. Era um homem de renome, mas desencantado. Os relatos davam conta de ser um dos poucos torcedores da Portuguesa de Desportos e pelo que eu entendi da conversa tinha nome de craque, Heleno. Para quem não sabe Heleno de Freitas fora um genial jogador do Botafogo. Mas um jogador de temperamento para lá de cascudo, um encrenqueiro de marca, um namorador de acabar casamentos alheios, um azougue. Heleno era na viuvez a sobriedade, mas era a tristeza em pessoa.
E naquela tarde entre copos surge uma moça no bar, dessas de dezessete. Linda, atraente, de óculos. Com uma justa e bela camiseta da Lusa. O que era impossível aconteceu e ambos acabaram a noite tagarelando sobre a Portuguesa. O entusiasmo da bela e o conhecimento dela sobre Djalma Santos, Julinho Botelho, Brandãozinho, Enéas, Jair, Wilsinho, Edu Marangon, Rodrigo Fabri, o fantástico Dener, Candinho despertaram os olhos cansados e céticos daquele senhor que pensara seriamente que nunca mais conheceria ninguém com menos de trinta anos torcendo pelo clube do Canindé.
E foi tanto assunto que Heleno se sentiu tentado a fazer o convite: "Lusa e Bandeirante de Birigüi, amanhã. Na tribuna, sou sócio." E ela topou no ato, mas fez reparo: "Vou. Mas de arquibancada, pois não sei ver o jogo sem o fado". Ouvindo o relato imaginei o sorriso da moça, deslumbrante, daqueles de parar o trem, gelar a arquibancada, domar a multidão. E senti que Heleno estaria em apuros.
E depois de Bandeirante tivemos o Rio Preto, o Mirassol, o Comercial e o Nacional, na Comendador Souza. E foi num amistoso contra o algum time grande qualquer, sentados pela primeira vez em cadeiras numeradas, que ouviram o primeiro sinal de alerta: "Vovô deixa a menina com a gente!".
Era inevitável que conversas sobre a Lusa resultassem em outros assuntos. Descobriram uma afinidade política incomum, ambos ainda eram socialistas, seja lá o que isso queira dizer. Eram terminantemente contrários à pena de morte, favoráveis à descriminalização do aborto e achavam uma tolice manter na ilegalidade a maconha e o jogo do bicho. Enquanto ela descia a lenha no Governo Lula, Heleno ainda acreditava em Papai Noel. Ela gostava da Pitty: "Te vejo sonhando e isso dá medo, perdido num mundo que não dá para entrar/Você está saindo da minha vida e parece que vai demorar.." Ele, de Vinícius e de Tom: "Porque tu foste para mim, meu amor, como um dia de sol".
E cada vez mais eram incomodados por comentários pérfidos sobre idade, sobre remédios para os homens trabalharem, sutis hipocrisias e galhofas. Mas nada parecia incomodar de fato, pois sempre havia a lembrança daquele golaço do Dener.
Mas sempre há os dias de luto. Numa tarde fria, ouvindo Amália Rodrigues, ele desistiu de tentar ser feliz, numa argumentação covarde, mas cheia de heroísmo romântico: "Não dá mais para nós. Amanhã você presta vestibular...". Ela não acreditou, mas infelizmente não reclamou, não argumentou, não tentou, sequer chorou. E desistiu também.
O silêncio no Bella era sepulcral. Alguém lembrou que a Portuguesa jogaria a partida decisiva no domingo. Mas, sinceramente, de que adiantaria?
2004.abril.16
Original, no Bolonistas:
http://osbolonistas.zip.net/arch2007-04-01_2007-04-30.html#2007_04-16_23_32_29-2402205-25
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Bolonistas céticos e os outros...
Todos reconhecem a grandiosidade das histórias de botecos. De certa forma e modo, as pequenas delícias do chope só se completam com as belezas das histórias anônimas, contadas e percebidas na mesa ao lado. Quem nunca "pescoçou" uma conversa alheia em boteco mente. Todos mentimos.
Lá pelas tantas era tão nítida a pérola que me pareciam os detalhes mais um filme do que novela, mais verdade que mentira, mais sóbria do que ébria. Os fatos relatados eram de amor febril e contrariado. Poucas vezes vi um silêncio tão grande entre as mesas do Bella Rubia. Repentinamente todos auscultavam a pérola. Alguns tinham lágrimas.
Tudo começou, sempre há um começo, numa dessas tardes sem compromisso que acabam por acabar em uma mesa, alguns copos e alguns acepipes. Pelo que notei, era um viúvo. Tinha lá os seus sessenta, menos que setenta. Era um homem de renome, mas desencantado. Os relatos davam conta de ser um dos poucos torcedores da Portuguesa de Desportos e pelo que eu entendi da conversa tinha nome de craque, Heleno. Para quem não sabe Heleno de Freitas fora um genial jogador do Botafogo. Mas um jogador de temperamento para lá de cascudo, um encrenqueiro de marca, um namorador de acabar casamentos alheios, um azougue. Heleno era na viuvez a sobriedade, mas era a tristeza em pessoa.
E naquela tarde entre copos surge uma moça no bar, dessas de dezessete. Linda, atraente, de óculos. Com uma justa e bela camiseta da Lusa. O que era impossível aconteceu e ambos acabaram a noite tagarelando sobre a Portuguesa. O entusiasmo da bela e o conhecimento dela sobre Djalma Santos, Julinho Botelho, Brandãozinho, Enéas, Jair, Wilsinho, Edu Marangon, Rodrigo Fabri, o fantástico Dener, Candinho despertaram os olhos cansados e céticos daquele senhor que pensara seriamente que nunca mais conheceria ninguém com menos de trinta anos torcendo pelo clube do Canindé.
E foi tanto assunto que Heleno se sentiu tentado a fazer o convite: "Lusa e Bandeirante de Birigüi, amanhã. Na tribuna, sou sócio." E ela topou no ato, mas fez reparo: "Vou. Mas de arquibancada, pois não sei ver o jogo sem o fado". Ouvindo o relato imaginei o sorriso da moça, deslumbrante, daqueles de parar o trem, gelar a arquibancada, domar a multidão. E senti que Heleno estaria em apuros.
E depois de Bandeirante tivemos o Rio Preto, o Mirassol, o Comercial e o Nacional, na Comendador Souza. E foi num amistoso contra o algum time grande qualquer, sentados pela primeira vez em cadeiras numeradas, que ouviram o primeiro sinal de alerta: "Vovô deixa a menina com a gente!".
Era inevitável que conversas sobre a Lusa resultassem em outros assuntos. Descobriram uma afinidade política incomum, ambos ainda eram socialistas, seja lá o que isso queira dizer. Eram terminantemente contrários à pena de morte, favoráveis à descriminalização do aborto e achavam uma tolice manter na ilegalidade a maconha e o jogo do bicho. Enquanto ela descia a lenha no Governo Lula, Heleno ainda acreditava em Papai Noel. Ela gostava da Pitty: "Te vejo sonhando e isso dá medo, perdido num mundo que não dá para entrar/Você está saindo da minha vida e parece que vai demorar.." Ele, de Vinícius e de Tom: "Porque tu foste para mim, meu amor, como um dia de sol".
E cada vez mais eram incomodados por comentários pérfidos sobre idade, sobre remédios para os homens trabalharem, sutis hipocrisias e galhofas. Mas nada parecia incomodar de fato, pois sempre havia a lembrança daquele golaço do Dener.
Mas sempre há os dias de luto. Numa tarde fria, ouvindo Amália Rodrigues, ele desistiu de tentar ser feliz, numa argumentação covarde, mas cheia de heroísmo romântico: "Não dá mais para nós. Amanhã você presta vestibular...". Ela não acreditou, mas infelizmente não reclamou, não argumentou, não tentou, sequer chorou. E desistiu também.
O silêncio no Bella era sepulcral. Alguém lembrou que a Portuguesa jogaria a partida decisiva no domingo. Mas, sinceramente, de que adiantaria?
2004.abril.16
quinta-feira, 3 de abril de 2008
O Circular para o Centro
"Até quando?" A voz de Raimundo parecia ecoar no sertão. Seu filho de oito anos, Washington, acabara de morrer de inanição. A ração que sua mãe houvera conseguido junto aos Ferreira fora insuficiente. "Até quando?"
Agildo era um típico coronel, dono de um mundão, como ele mesmo dizia, de hectares de terra, na Paraíba e em Pernambuco. "Até quando esses malditos vão continuar molestando minhas terras?" A voz do coronel repetia uma pergunta antiga. O padre Saulo não se intimidara com os acontecimentos. "Eu em que avisei!"
Padre Saulo, moço idealista. Diziam pelo sertão e pelo agreste que ele era comunista. A comunidade de São Francisco das Graças o tinha como protetor, um homem que lutava contra as agonias da seca e a desgraça da fome. "Até quando, Senhor?" A trêmula voz do padre parecia uma sina. Padre Saulo está se despedindo da aldeia, o bispo o nomeou para uma paróquia do sul do país. "Tenham fé!"
"O bispo representa um papel importante nessa relação que sustenta a estrutura social e política nordestina. Se por um lado, a influência, até carismática, de alguns padres contribuía para o questionamento da realidade da seca, a Igreja sempre auxiliou na manutenção de um esquema de poder no país." A aula de história do professor Carlos era assistida sob os olhinhos excitados de Paulo e Fernanda. Carlos falava com entusiasmo, mas falava de um Brasil não tão conhecido pelos alunos da classe média paulistana, matriculados naquela escola. "É preciso botar alguma coisa na cabecinha desses meninos, que os façam refletir sobre a realidade na qual nós vivemos."
Paulo chegou em casa e comenta na mesa do jantar que o professor Carlos fora demitido, seu pai dá de ombros, não gostava muito dos métodos do professor.
"Eu desconfiava que isso ia acontecer".
quarta-feira, 2 de abril de 2008
Silêncios...
Poema muito antigo... Já estava na faculdade. Gosto. E desgosto. Sei lá...
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viagem na revolução dos homens
I.
o grito é surdo, é dor
inaudível o grito doí, corrói
arde o íntimo, destrói
o gosto é amargo, mau sabor
o paladar desgosta, é ruim
e o homem amedrontado vê o final. Vê o fim
ódio ao que vê, repúdio ao seu odor.
hipocrisia invade as narinas
o cheiro fétido desorienta
homem desmaia, desiste
há coragem em ruínas
pálido o corpo se apresenta
e a hipocrisia manda, insiste
destruição...
corrosão...corrupção.
o frio é intenso, as roupas não o são
esperança hemorrágica
a fome é farta, a comida não
ácida, a desilusão queima
o saber é fácil, e as escolas ...
imoral, perplexidade metafórica
o homem é humano, suas atitudes é que duvidam.
doença fetal, fatal, final.
o credo é limpo. E as igrejas são ?
coisas, objetos e como mensurar a farsa que somos nós?
o sonho é belo. E o acordar ?
intocável moral. vazia e amoral
destruído, corroído, corrompido
II.
o grito não é surdo, distante
homens nus quebram espelhos
a falsa imagem arde, reflexos que mentem
revolucionários entendem o grito
a moral apodrece suas instituições dementes
VOZES ESPLENDOROSAS, VIVA O INAUDITO!
doente impassível, inaudível
finge ter suas posses
imprestável imagem, irreparável
revolucionários e suas vozes
passos fortes, decididos por um caminho favorável
revolução caminha, incontestável
sem traumas ou credos. Simples e Memorável!
III.
cuidado com o insano, com os homens
o dono do hospital não atenderá o doente
impassível
inaudível, inassistível
o dono da fábrica fabricará seu ácido
desilusão neutralizada voltará a queimar
revolução passará, gritará
doente surdo, mudo, cego não vai perceber, ou entender
Aos revolucionários restarão as rosas
o horrível cheiro da hipocrisia
a insanidade na desilusão
o amargo gosto
decepção
Aos gritos prevalecerá a surdez
um resto de esperança hemorrágica
pequeno florescer de rosas
A primavera e talvez um dia de vitória
1991.janeiro.07
terça-feira, 1 de abril de 2008
Dias quentes de verão
Confissões VIII – Olfato....
As pequenas descobertas são as melhores. Ainda mais se percebemos que as pequenas são sempre grandes descobertas. Percebemos nas pequenas a imensidão de possibilidades destinadas aos grandes eventos.
Na correria da paternidade descobrimos pequenas, e deliciosas, coisas. Meus primeiros dias foram muito agitados. Uma agitação eufórica. A mãe precisa de muitos cuidados nos primeiros dias. Precisa de carinhos e de afagos. O pequeno vai descobrindo na mãe pequenas coisas importantes para a vida dele. E o pai vai descobrindo, com a mãe, que há muitas tarefas no dia a dia de uma casa.
Cheguei em casa depois de uma dessas correrias. O pequeno chorava e era evidente que precisava de colo. E que coisa é este pequeno.....
No colo ele começa a grunhir. Vira o rosto para um lado e para o outro. E faz cara feia. E cerra os olhos. E grunhi... e vira o rosto novamente. E remexe o corpo, evidentemente, um estranhamento. Seria o pai um ser absolutamente estranho? Seria o colo do pai, que momentos antes servira de cama, um colo absurdo? Meu cérebro quase entra em pane. “Meu filho não me quer mais!!!!”
O fato é que o moço não parava quieto e desandou a chorar. O que estava acontecendo?
Agora, imaginemos o calor de fevereiro. Imaginemos, também, este calor e um supermercado. Imaginemos os esforços para carregar pacotes, carregar pilhas de coisas compradas e imaginemos os esforços empreendidos em tal jornada. O calor, as coisas, o esforço físico. Suor. Transpiração. E uma camiseta inexoravelmente fadada ao mau odor. Ou um odor esquisito. Eureca!!!!
Deixei o prantear do menino com a mãe, que estava atônita, sai correndo pelos cômodos do apartamento e coloquei uma camisa nova. Supimpa... vestimenta nova e o colo do pai voltou a ser um bom local, um porto seguro. E o menino dormiu, gostosamente, no colo paterno. Para a tranqüilidade da mãe e felicidade total do pai.
Mas o pai escondeu a historieta toda, escondeu as conclusões quanto ao odor e escondeu as reflexões que levaram a tais conclusões, temendo uma reprimenda materna: “Mas você não trocou de roupa????”
Alguns dias depois, muitas camisetas depois.... uma noitada de choro. Altos volumes e o menino incapaz de dizer o que estava sentindo. Era fome, pelo menos era o horário da fome. Madrugada. Mas a mãe não conseguia fazer o menino acalmar e, muito menos, amamentar. Retorcendo o corpo, vermelho como uma pequena bola de fogo, o pequeno resmungava e chorava.
Imaginemos um casal em uma grande cidade brasileira, numa madrugada quente de fevereiro. Imaginemos um casal novato em sua prole. Imaginemos, agora, que, até aquela madrugada, todas as vezes que fora instado a amamentar o nenê desse verdadeiras e vorazes demonstrações de apetite. A madrugada, a novidade e o chorar. Ainda mais fevereiro e o calor intenso. Calor, as coisas, o esforço físico. Eureca.....
“Mãe, porquê você não deixa ele aqui comigo e vai tomar um banhinho para acalmar....?”
Sugeri, um pouco assustado, tal medida, observando que a face da mãe estava assustada.
Batata! No retorno da mãe, banho tomado, o pequeno sugou, sugou e até cansou. Parou de chorar, dormiu e voltamos ao lar das maravilhas. Incrédula, a mãe me pergunta: “O que te deu na cabeça para pedir pra que eu tomasse banho?”. “O calor, mãe. O calor.... esse menino é muito exigente.”
Pequenas descobertas, grandes possibilidades.
2004.
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